Nos países asiáticos, onde predomina o budismo com as várias seitas, o Milinda Panha ‒ “Perguntas de Milinda”, é um texto que os monges e fiéis budistas leem e veneram. O autor é desconhecido, mas a senhora Rhys Davids (The Milinda Questions), admite que tenha sido um pandit (bacharel) da casta bramânica. Segundo essa afamada indianista, terminando o pandit o seu curso em alguma escola nas proximidades de Sagala, o moço brâmane, cujo nome deve ter sido Manava, dedicou-se à profissão de redator de trabalhos literários e de cartas particulares, para a assinatura de pessoas das altas castas, e à de professor particular. Nessa qualidade, teria sido Manava admitido no palácio real a serviço do rei Dionísio, sucessor de Milinda.
Milinda é a tradução do nome grego Menandro. Durante a estadia na Índia, Alexandre instituiu rei um dos seus generais, do qual descendia Menandro. O seu antecessor, Demétrio, cerca do ano 175 a.C., transferiu sua capital de Bactriana para o Pendjabe.
Informa Estrabão que esse monarca estendeu suas conquistas até o rio Jamuna, tendo até alcançado o rio Pataliputra, segundo autores hindus. Menandro teria reinado durante a segunda metade do século II a.C. Era um rei que gostava de participar de discussões filosóficas, como também gostavam disso gregos e hindus.
Um dia, supõe ainda a Sra. Rhys Davids, no palácio do rei Dionísio, decidiu-se abrir o armário onde se guardavam as placas metálicas em que o brâmane pandit reproduzira as memoráveis discussões do rei Milinda com um clérigo inteligente e instruído. O texto teria sido copiado em folhas de matéria vegetal, amarradas em rolo. Mas quem teria sido o redator das placas metálicas? Manava?
Ignora-se o nome do autor, que a senhora Rhys Davids assegura ter sido não um monge budista, mas um brâmane que conhecia bem a doutrina do Sáquia-Muni. Aliás, naquela época em que o budismo se alastrava pela Índia, ameaçando o prestígio da casta bramânica, os brâmanes já estudavam a teoria divulgada pelos adeptos daquela heresia, a fim de rebaterem a palavra dos monges, nas escolas, nos lugares públicos, nas reuniões em palácios reais ou senhoriais.
De qualquer modo, o texto reproduzido por Manava não somente revela liberdade na maneira de dispor da matéria, como também que ele era mais filósofo e mais original pensador do que teria sido o monge Nagasena, se este realmente tivesse existido.
Note-se ainda que admitem os indianistas ter sido o primitivo texto, atribuído a Manava, alterado quanto disposição dos capítulos e talvez quanto ao seu número. Informa Louis Finot que no Tripitaka chinês há dois textos de uma obra intitulada Na-Sien Pi-Kien King (Livro do bikchu Nagasena). Essa obra é tradução do Milinda Panha, feita nos tempos da dinastia dos Tsin (317-420 da Era cristã). A tradução não foi do pali e sim de um original, talvez redigido em um dos idiomas vulgares do Noroeste da Índia. Esse original, na opinião de Louis Finot, é mais arcaico do que o texto levado à ilha de Ceilão.
No livro em chinês, o Milinda Panha reduz-se a três partes, sendo que o teor da terceira, na opinião desse indianista francês, é qualitativamente inferior à segunda. Antes da tradução francesa de Louis Finot (1923), Rhys Davids traduziu as partes I e III, para a coleção Livros Sagrados do Oriente, dirigida por Max Müler.
Ignora-se a data da primeira redação do Milinda Panha. Entretanto, a respeito há uma referência cronológica certa: o ano 420 da nossa Era para a versão chinesa. Em todo caso, é lícito admitir que essa redação tenha sido feita, séculos antes.
Finot admite que a prosa é pessoal, com estilo diferente do que se lê nos Pitakas e em outras escrituras budistas. Acrescenta o mesmo indianista francês: “Estaríamos propensos a reconhece?* nessa forma original e quase insólita, uma influência helênica. Na viela que anima os personagens, na vivacidade do diálogo, na rapidez das respostas, na sobriedade das frases, há qualquer coisa que lembra mais as palestras socráticas da Academia do que as conferências difusas e lentas do Jetavana”.
No Milinda Panha expõe-se a doutrina do Hinayana (pequeno veículo), que é a doutrina professada na Ilha do Ceilão, na Birmânia, nos países da península da Indochina (p-ex, Vietnã), na Tailândia, na área das nações da Insulíndia, no Oceano Pacífico. Essa doutrina bem se pode denominar ortodoxa e é praticada pelos monges que seguem a tradição dos Theravadins.
No ano 624 a.C., segundo a tradição budista, nasceu em Kapilavastu, capital de um pequeno reino no Nepal, Nordeste da índia, o príncipe Siddharta Gautama. O pai, o rei Suddhodana, pertencia à tribo dos Sakkyas e a mãe chamava-se Maha-Maya, falecida sete dias depois de nascido Gautama.
Diz a lenda de Gautama que um eremita de nome Asita ao ver o recém-nascido, predisse que ele seria um Buda. Daí lhe terem dado os progenitores o nome Siddharta, que significa “aquele que realizou a sua missão”.
O pai mandou construir três palácios, onde viveria o príncipe, na companhia de muitas esposas, em conformidade com a tradição poligâmica oriental, distraído nas frequentes diversões e praticamente prisioneiro naqueles ambientes luxuosos. Isso porque o rajá seu pai pretendia que o filho fosse seu herdeiro, em vez de Buda.
Afinal, casou-se o príncipe, aos 16 anos, com uma jovem da mesma casta, sua prima, a princesa Yasodhara. As núpcias celebraram-se de acordo com o ritual dos Gandharvas. Segundo esse ritual, os noivos sentam-se em uma almofada com tecido de fios de ouro. O braço esquerdo do noivo e o direito da noiva são amarrados um ao outro por fios de seda. Corta-se o bolo nupcial, espalha-se arroz no solo e borrifa-se de perfume a sala, onde se ergue um altar em que arde uma chama. Os noivos dão três voltas, cada uma com sete passos, em torno do altar. No leito, colocam-se duas palhas que simbolizam a união até a morte.
Nasceu-lhes um filho de nome Rahula. Mas não obstante aquela existência feliz, o príncipe Siddharta pensava em conhecer o mundo que se estendia além dos muros dos parques dos três palácios. E um dia, conseguiu sair até a cidade, acompanhado do fiel serviçal de nome Tchanna. Enquanto passeava, ele viu um ancião decrépito, um doente conduzido por outras pessoas em uma padiola, um cadáver que estava sendo levado para ser incinerado em uma fogueira, e afinal um monge.
Aqueles encontros impressionaram Gautama, que não podia entender o que significavam. O lacaio explicou-lhe que todas as criaturas envelhecem, adoecem e morrem. Disse-lhe quem era o homem vestido de monge. Depois daquele passeio, Gautama não mais sentiu prazer nas diversões do palácio.
Resolveu fugir. Uma noite, montado no seu cavalo Kantaka, acompanhado de Tchanna, o príncipe Siddharta, depois de olhar a esposa adormecida e o filhinho, saiu do palácio sem ser visto pelos guardas. Distante da cidade, cortou os cabelos, desfez-se das vestimentas principescas, que entregou ao lacaio para que as levasse ao rei.
Dirigiu-se à cidade de Rajagriha, capital do reino de Magadha. De lá afastou-se para viver em companhia de dois brâmanes, que lhe ensinaram a doutrina tradicional, explicando-lhe a doutrina do Karma, o ritual védico, os métodos ascéticos. Não lhe satisfazia, entretanto, o ensino daqueles dois brâmanes. O príncipe Siddharta foi frequentar os templos, visitas que lhe causaram tristeza e aversão pela crueldade dos sacrifícios dos animais. Convenceu-se da ineficácia daqueles sacrifícios, da verbiagem das preces, da inutilidade das fórmulas mágicas. Desenganou-se do valor do culto aos deuses.
Continuando sua peregrinação, chegou ele a um eremitério onde viviam cinco ascetas, na floresta de Uruvila, à margem do rio Nairanjana. Durante cinco anos, conviveu com aqueles eremitas, acompanhando-os em suas práticas ascéticas rigorosas. Chegou ao ponto de ingerir apenas um grão de arroz por dia.
Apesar dessa penitência, Gautama concluiu que os rigores em nada contribuíam para a solução do seu problema, que era o do conhecimento da causa do sofrimento, do qual ele tivera um exemplo impressionante no velho, no doente e no cadáver. Verificou que a mortificação não extingue o desejo, que o conhecimento não se obtém com o organismo enfraquecido, que o sofrimento físico perturba o espírito, assim incapacitado de manter a tranquilidade necessária à meditação.
Afinal, um dia, depois de um banho no rio próximo ao eremitério, voltando para a sua cabana, caiu e ficou estendido no solo como se tivesse morrido, tal a sua fraqueza. Os monges supuseram-no, realmente, morto. Mas a filha cie um pastor, chamada Nanda, passava pela estrada, levando a refeição dos pastores. Viu que ele ainda estava vivo e deu-lhe a comer uma tigela de arroz de leite. Gautama aceitou o alimento e não tardou em reanimar-se. Resolveu não continuar com o jejum. Essa resolução escandalizou os outros eremitas, que se afastaram de Gautama. Este saiu à procura ele um local, onde pudesse entregar-se às meditações. E na noite da lua cheia de Vesak (data correspondente ao mês de maio do ano de 544 a.C. ), sob a copa da árvore Bodh Gaya, em uma clareira na floresta, o príncipe Siddharta atingia a plenitude de consciência que lhe proporcionou a sabedoria, o conhecimento da razão de ser elo sofrimento. Teria sido talvez essa iluminação uma percepção intuitiva, análoga à que ocorreu com Isaac Newton, também sentado perto de uma árvore, que teve a intuição da fórmula da lei de gravitação universal ao ver cair uma elas maçãs que pendiam do galho de uma macieira.
Naquela intuição sintetizava-se a percepção da origem do sofrimento, problema que estava sendo trabalhado pelo espírito de Gautama. Agora a sua inteligência iria desenvolver os raciocínios, os argumentos que seriam o suporte da doutrina. Resolveu divulgar a sua descoberta da verdade, assim auxiliando os seres humanos a se libertarem do sofrimento. Dirigiu-se logo aos cinco eremitas, com os quais convivera nos últimos tempos. No caminho, encontrou-se com um antigo conhecido, a quem narrou o que lhe acontecera. O conhecido recusou admitir fosse Gautama um Jina (vencedor). Os companheiros no eremitério receberam-no com frieza. Mas Gautama, agora o iluminado, venceu a indiferença dos cinco eremitas, demonstrando-lhes a verdade do ensino que leva à libertação cio sofrimento e à realização do Nirvana. Um deles, o mais velho, declarou: “Tu achaste a Verdade!”
Então rogaram os eremitas que o Mestre lhes desse a ordenação e pronunciaram os três votos de obediência:
“Recorrerei ao Buda com fé!”
“Recorrerei à doutrina com fé!”
“Recorrerei à Congregação com fé!”
Assim ficou instituído o Sangha, a Igreja de Buda, que depois se dirigiu à cidade de Benares, onde proferiu o seu primeiro grande sermão. Os frutos desse sermão foram numerosos conversos à doutrina. Muitos deles fizeram votos de obediência religiosa.
Afastando-se de Benares, hospedou-se Buda em casa do brâmane Kaciapa. Esse brâmane criava uma cobra, que estava sempre perto do altar onde se achava o fogo, que o brâmane mantinha aceso, de acordo com a tradição. Kaciapa receou hospedar Gautama, pois temia que a serpente picasse o Buda. Mas durante a noite, Gautama, na sala onde ficara, repeliu os botes da cobra que morreu de raiva, na opinião dos devotos de Buda. Pela manhã, embora satisfeito por encontrar Buda vivo, Kaciapa sentiu inveja do Mestre. Este, percebendo o pensamento do brâmane, demonstrou-lhe ser pernicioso esse pensamento, que resultava em obstáculo no caminho da santidade. Arrependido, Kaciapa rogou sua admissão no Sangha.
Buda aconselhou-lhe consultar os seus discípulos, que eram Jatilas, adoradores do fogo. Estes não se opuseram a que o brâmane se convertesse à doutrina de Gautama, pois eles também pediram sua admissão no Sangha.
Voltando a Rajagriha, acompanhado de Kaciapa, Gautama converteu o rei Bimbasara. Desde então sucederam-se as conversões. O seu pai enviou-lhe um mensageiro, pedindo a Gautama que fosse vê-lo. Buda acedeu ao chamado paterno. E o rei Suddhodana, em companhia dos parentes e de, toda a corte foi ao encontro do filho. Este, vendo o pai acabrunhado por ver o filho viver como um monge mendigo, o que implicava em humilhação para o monarca, observou-lhe então: “Os laços de amor que vos ligam ao filho, estendem-se com a mesma bondade a todos os seres. Estais agora recebendo alguém maior do que Siddharta. Estais recebendo o Mestre da Verdade, o Apóstolo da Justiça! A paz do Nirvana entrará em vosso coração!”
O rei voltou para o palácio e Gautama foi passar a noite na mata próxima. Pela manhã, ele tomou a tigela e foi pedir esmola à porta das casas na cidade. Esse procedimento de Buda escandalizou a Corte e levou o rajá a repreendê-lo.
Buda desculpou-se, dizendo:
― Todos os da minha linhagem procedem assim...
― Como? ‒ perguntou-lhe o pai surpreso. ‒ Os teus antepassados foram reis! Jamais nenhum deles mendigou alimento!
― Grande rei ‒ observou Gautama ‒ o senhor e sua família têm direito a se dizerem descendentes de reis. Mas eu descendo de Budas, desde tempos remotos. Todos viveram mendigando o seu alimento.
Buda também visitou sua esposa, a princesa Yasodhara. Durante sua permanência em Kapilavastu, converteram-se à doutrina, recebendo a ordenação monacal, seu primo irmão, Ananda, seu cunhado Upali, o barbeiro da Corte, o filósofo Anuruddha, também primo do Sáquia-Muni, e por último seu filho Rahula, embora ainda adolescente.
Algum tempo depois, Buda caminhou até Çravasti, para ver o edifício que lhe fora oferecido pelo príncipe Djeta e pelo ricaço Anathapindika. Aceitou a doação e voltou a Kapilavastu. Logo após o seu regresso à cidade natal, Gautama adoeceu. O médico que o tratou recomendou-lhe andar vestido, pois o Mestre cobria-se apenas de andrajos. Foi por esse tempo que faleceu o rei seu pai.
Até então, Siddharta recusara admitir mulheres no Sangha. A esposa Yasodhara já lhe havia solicitado, por três vezes, a admissão na Comunidade. Morto o progenitor, a madrasta de Buda fez-lhe o mesmo pedido, acompanhada de Yasodhara e de muitas outras mulheres. Afinal, o Bem-aventurado consentiu em admitir monjas no Sangha.
O Tathagata dedicou-se desde então ao apostolado, peregrinando por várias regiões para converter homens, para levá-los ao caminho da libertação. Só deixava de caminhar durante a estação chuvosa.
Foi em uma dessas viagens, quando Gautama já estava com 80 anos de idade, em 460 a.C., que Buda entrou no Nirvana. Em seu caminho teria de passar pela cidade de Pava, onde morava um budista, o ferreiro Cunda, que mandou preparar uma boa refeição para o Mestre e seus monges. Retirando-se para descansar na casa onde se abrigavam os companheiros de Buda, este sentiu-se mal e deitou-se, como era seu costume, sobre o lado direito. Advertiu Ananda de que não tardaria a subir ao Nirvana. O Buda, segundo os discípulos, teria falecido em consequência de intoxicação alimentar.
Em seu livro traduzido ao português por Gustavo Barroso, intitulado Jesus Desconhecido, observa Merejkovsky que, se o Cristo escreveu uma só vez na areia, Buda nem na areia escreveu. Assim a doutrina do Tathagata foi transmitida à posteridade pelos discípulos, logo após o falecimento do Mestre, reunidos em Concílio, na cidade de Rajagriha, sendo presidente o venerável Kassapa. Ananda, primo irmão do Sáqui-Muni, que teria sido uma espécie de João Evangelista, redigiu o texto dos sermões, os Sutras. Kassapa foi redator não somente do Vinaya (Livro das regras monásticas), como também do Abhidhamma (Lei superior), que trata de psicologia e de metafísica.
Um século depois, reuniu-se o segundo Concílio, em Vesali, durante o qual ocorreu a cisão da congregação budista. Um grupo de monges propôs fossem menos rigorosas as regras disciplinares. A maioria dos monges, entretanto, rejeitou a reforma proposta por aqueles que se denominariam Mahasanghikas (adeptos da grande comunidade), os quais seriam os religiosos que instituiriam o Mahayana. Os tradicionalistas, os Sthaviras, também se denominariam Theravadins, fiéis ao ensino dos velhos (theras).
A diferença doutrinária entre os dois ramos do budismo está nos seguintes pontos:
Os adeptos do Mahayana afirmam que a consciência búdica já se acha em estado potencial no ente humano, podendo assim atualizar-se mediante as práticas ascéticas. Os monges do Hinayana ensinam que a consciência búdica é adquirida, sendo efeito da exata observância das normas prescritas no Vinaya.
Um terceiro Concílio realizou-se em Pataliputta, sob a direção do monge Tissa. Patrocinou-o o imperador Assoka, entusiasta adepto do budismo. Teve esse Concílio por finalidade a revisão e a confirmação do cânone e ao mesmo tempo, a rejeição da ideia de reforma disciplinar. Segundo Christmas Humphreys, teria sido convocado por Theravadins.
O imperador Assoka promoveu um movimento missionário, estimulando a ação de apóstolos budistas, que viajaram até a Síria, o Egito, a Macedônia, Cirene, o Épiro e a ilha do Ceilão. A época do monarca, já comparado ao romano Constantino, marcou o período áureo do budismo na Índia. Logo após a morte do imperador, empenharam-se os brâmanes em uma reação tenaz, no combate à nova doutrina. O resultado da reação bramânica foi o recuo cio budismo, no território propriamente hindu.
Mas a doutrina do Sáqui-Muni já se divulgara por uma larga e extensa área do continente asiático. O Hinayana enraizara-se no Ceilão, em Burma, na Indochina, no Camboja, na Tailândia, e em outras áreas do sudeste da Ásia. O Mahayana foi ao Tibete, entrou na China, na Coréia e alcançou o Japão, onde, aliás subdividiu-se em 17 seitas uma das quais, o Zen, cindiu-se em três ramos.
Se no tempo do imperador Assoka já se haviam delineado as diferenças entre os monges budistas, as divergências de cunho doutrinário e relativas à pragmática da vida religiosa assumiram feição definitiva no século I antes da era cristã.
Já no segundo Concílio, cem anos depois do falecimento de Gautama, os Sthaviras tinham iniciado a cisão, no plano da aplicação dos preceitos disciplinares, compendiados no Vinayapitaka, suscitando assim o cisma dos Mahasanghikas. Afinal, no século I a.C., já tinham assumido feição definida as discrepâncias, rivalidades e até mesmo atritos. Ainda hoje não se eliminaram os pontos sensíveis na interpretação dada pelos adeptos de uma e de outra das duas maiores igrejas budistas. Ofereço um resumo do complexo doutrinário do Hinayana e do Mahayana.
O Hinayana (pequeno veículo) atém-se aos significados formais e vocabulares da doutrina, considerada segundo critério escolástico, objetivista, racionalístico. Para um adepto do Hinayana, o significado de um texto se acha no teor do próprio texto.
Os hinaianistas defendiam o rigorismo ascético. Afirmavam que não poderia atingir o objetivo da vida budista quem não se dedicasse ao ascetismo, subjugando desejos, afetos, paixões.
O Mahayana (grande veículo) foi instituído pelos monges budistas que rejeitavam o critério dos Theravadins para a interpretação da doutrina. A denominação da escola possibilitava o significado de “ensino com maior alcance”.
Um exemplo da diferença entre as duas escolas pode ser dado pela concepção do Arhat. Segundo o Hinayana, o Arhat é o homem que atingiu a santidade perfeita, estando liberto da necessidade do renascimento. Mas de acordo com os pressupostos da escola, ele não se sente disposto a estender às demais criaturas os benefícios da compaixão, do amor que o Arhat pode dispensar aos entes humanos sofredores. Advertem os mahaianistas que o Arhat, no Nirvana, para beneficiar alguém não vai além do conselho, da exortação à perseverança na prática da virtude. Isso porque o Nirvana depende só do esforço individual. O Arhat é um exemplo do individualismo espiritualista. Quem não se esforçar, praticando o autodomínio dos sentidos, não atingirá a outra margem do oceano da existência. Para essa travessia, o monge contará somente consigo, ninguém o auxiliará.
Segundo os adeptos do Mahayana, esse individualismo não estava de acordo com o pensamento de Buda. Sem dúvida, Gautama obtivera o conhecimento que leva ao Nirvana, depois de vários renascimentos, do esforço perseverante, da prática das seis virtudes. Mas resultou da sua iluminação mais do que benefício apenas individual, houve uma graça extensiva a todos os seres humanos. Sem a participação de outras criaturas nos benefícios da iluminação, esta carece de sentido. O Arhat deve sentir-se unido a todos os seres humanos. O seu amor não exclui ninguém, envolve todas as criaturas.
Para os hinaianistas, a prática das regras ascéticas exigia a extinção dos desejos, a submissão aos exercícios severos, o rompimento dos laços de família. Somente assim, poderia o monge nutrir a esperança de renascer em melhores condições e afinal alcançar o Nirvana.
Os que se filiavam ao Mahayana não admitiam a necessidade de rigorismo para a salvação. Segundo eles, a religião prescinde de exclusivismos. O conhecimento final, que implica em salvação, não decorre da extinção das paixões e dos desejos. A salvação decorrerá da extirpação do egoísmo implícito nos impulsos, nas tendências da personalidade, na vontade exercida em desacordo com os princípios do amor, da tolerância e da compreensão dos motivos dos erros dos nossos semelhantes. Os chefes de família, até os vagabundos, podem obter a iluminação. Para isso lhes bastará admitirem que há uma verdade, que é a verdade ela doutrina do Tathagata.
Quanto à concepção da natureza da personalidade do Mestre, o Mahayana admite que Buda seja não somente um ente histórico, mas também um ser espiritual, ilimitado, universal, cuja individualidade se estende além de todas as formas, sendo também capaz de assumir qualquer forma. Para os mahaianistas, este é um dos princípios fundamentais da sua doutrina.
Por isso mesmo, em conformidade com a ideia de expediente útil (upaya), a energia búdica encarna-se em muitas formas, para auxiliar os homens a se livrarem da ignorância e da miséria morai. Daí a multidão de Iludas e de Bodisatvas, cultuados nas várias igrejas ou seitas budistas, oriundas do Mahayana.
Quaisquer que sejam, entretanto, as escolas e seitas, todas se apoiam em uma doutrina originária, comum. Essa doutrina envolve quatro princípios ou fundamentos teóricos: 1 ‒ O Karma; 2 ‒ As quatro nobres verdades; 3 ‒ O vazio; 4 ‒ O Não-Eu.
O Karma é um processo universal de ação, em virtude do qual tudo produz efeito. Procede, mecanicamente, segundo o maior ou menor grau de energia implícita em um ato.
De acordo com o ensino budista, não há limites no tempo ou no espaço para ocorrer o efeito de um ato. Em se tratando de criaturas humanas, a existência feliz ou infeliz, no mundo físico, a permanência em um céu ou em um inferno, depois da cisão de Nama-Rupa (a morte física), são efeitos de atos bons ou maus, são efeitos cármicos.
As quatro nobres verdades são: a) o sofrimento; b) a causa do sofrimento, o desejo; c) a anulação do desejo; d) os meios de anulação do desejo.
A causa do sofrimento é o desejo, a sede da existência. Bhava é uma força tão potente que arrasta o ente humano à vida terrestre.
O desejo insatisfeito apoia-se na ignorância (avidya), que dá origem às tendências ‒ sâmsaras, às inclinações perversas. É o desejo a energia de onde provém a vida dos sentidos (vedana), a sede de sensações (trishna), a estrutura pessoal, conjunto de elementos físicos e psicológicos (nama-rupa), que exprime o Karma ao qual está condicionada essa estrutura físico-psicológica.
A supressão do sofrimento ocorre quando o homem se liberta dos atributos do ente, ou seja, dos skandas.
Os skandas compreendem: a) qualidades materiais: extensão, solidez, cor; b) sensações; c) percepções, conceitos; d) disposições psicológicas e intelectuais; e) pensamentos.
Os skandas, agentes da tendência ao gozo, suscitam o processo cármico, mediante o qual funciona a lei de causa e efeito. Daí o encadeamento dos 12 Nidanas:
1o ‒ Causa da existência;
2o ‒ O sofrimento, inerente à condição do ser;
3o ‒ A causa do sofrimento, o nascimento;
4o ‒ A causa do nascimento, a concepção;
5o ‒ A causa da concepção, o desejo;
6o ‒ A causa do desejo, a sensação;
7o ‒ A causa da sensação: o contato;
8o ‒ A causa do contato, que está nos sentidos;
9o ‒ A causa dos sentidos: a forma;
10o ‒ Expressa pelo termo Nama-Rupa; a causa do Nama é o entendimento;
11o ‒ A causa do entendimento vem dos conceitos;
12o ‒ Os conceitos decorrem da ignorância (avidya).
Para a libertação dos sofrimentos oriundos de desejos insatisfeitos e de necessidades causadas vela ignorância é indispensável dominar desejos e extinguir necessidades, mediante a anulação de tanha (sede de existir e de sentir). Esse domínio será possível, seguindo-se o Nobre Óctuplo Caminho, em que estão as seguintes oito pistas:
1 –A verdadeira crença na lei de causalidade (Karma);
2 –O pensamento reto;
3 –A linguagem reta;
4 –A ação reta;
5 –Os meios retos de ganhar a própria subsistência;
6 –O esforço reto;
7 –A lembrança exata e a disciplina interna;
8 –A verdadeira concentração do pensamento.
A prática dessas normas faz que se rompam os laços (upadanas), o que possibilitará o acesso ao Nirvana.
Além das normas do Nobre Óctuplo Caminho, o budismo apresenta cinco regras para o procedimento das pessoas que não vivem na reclusão monacal. São as seguintes:
1 –Não matar.
2 –Dar e receber livremente.
3 –Não prestar falso testemunho, nem mentir, nem caluniar.
4 –Não beber líquidos alcoólicos, drogas e outros produtos que perturbem a mente.
5 –Não tocar na mulher de outro homem, não cometer atos carnais contrários à lei natural.
Quanto às meditações, há cinco espécies:
1 –Sobre o amor que devemos sentir para com todas as criaturas, inclusive os inimigos.
2 –Sobre a piedade e a compaixão para em todos aqueles que sofrem.
3 –Sobre a alegria que devemos sentir com a prosperidade das outras criaturas humanas.
4 –Sobre a impureza e as funestas consequências dos pecados.
5 –Sobre a serenidade, condição para alguém colocar-se acima das vicissitudes da existência, considerando cada pessoa, serenamente, a sua própria sorte.
Além dessas cinco espécies de meditação, o monge poderá exercitar-se em outras quatro, que são as de meditação profunda (dhyana) cujos resultados são:
* Supressão de qualquer prazer libidinoso;
* Tranquilidade de espirito, alegria plena e satisfação;
* Atração da inteligência para as coisas espirituais;
* Pureza e paz interior imperturbável.
Há dois métodos para suprimir-se a paixão e atingir-se o conhecimento, a saber.
1 –Samatha, modo de viver isento de desejos, aplicando-se a vontade, constantemente, ao domínio das funções sensoriais;
2 –Vidarsana, a reflexão metódica para se alcançar o pleno conhecimento das leis da nossa existência, disso advindo a sabedoria.
A prática das meditações e dos métodos de autodomínio possibilita a atualização de faculdades especiais, adormecidas no ente humano, em Nama-Rupa. Denomina-se Abhijna cada uma dessas faculdades, ou Siddhi, que são:
1 –Olho celeste, que possibilita o conhecimento intuitivo de cada objeto ou ser existente no Universo (clarividência);
2 –Ouvido celeste, a capacidade de captar qualquer som (clariaudiência);
3 –A visão de todas as formas do monge em suas existências anteriores e as de qualquer outra criatura;
4 –A capacidade de assumir qualquer outra forma, seja humana, animal ou vegetal (telestesia);
5 –A percepção intuitiva do pensamento alheio;
6 –O conhecimento do passado e do futuro da evolução humana.
Esta exposição dos princípios e normas pragmáticas a serem observadas pelos monges ou fervorosos fiéis budistas não inclui a relação dos fundamentos metafísicos, doutrinários, em que se apoiam os métodos da ética e da ascese do budismo.
Os fundamentos metafísicos do budismo são:
1 –Perpetuidade do Universo.
2 –Impermanência de todas as formas e seres.
3 –Processo universal perpétuo de nascimento, crescimento, morte e renascimento de todos os seres (Sâmsara).
4 –Esse processo universal fenomenológico realiza-se mediante a lei de causalidade, vulgarmente conhecida sob a denominação de Karma.
5 –Ninguém é livre de agir deste ou daquele modo. No entanto, o karma individual possibilita a um indivíduo libertar-se da perpetuidade do Sâmsara, mediante a prática das normas éticas (ascéticas no caso do monge), depois de realizar o conhecimento da razão de ser do Universo e do sofrimento inseparável da existência individual e coletiva.
6 –Ninguém é imortal, nem neste nem nos outros mundos. Segundo o budismo do Hinayana, a vida do ser que alcançou o Nirvana é a ausência de qualquer das vivências características do ente humano e dos seres divinos. Um Buda está além e acima do Bem e do Mal. Mas, sendo indefinida e infinita, essa beatitude não será eterna.
O Mahayana dá ao Buda Gautama, fundador do budismo, o primado universal e a superioridade ontológica sobre todas as criaturas, deuses, devas, gênios, demônios e homens.
Mas, se do ponto de vista do racionalismo, a doutrina budista vale por um grande avanço intelectual, tem o significado de reação generosa em face de privilégios clericais, apresentando uma concepção igualitária do ente humano, nem por isso muitos dos seus postulados são originais ou novos.
A filosofia Sánquia, os Nastikas e até mesmo os Upanichadas forneceram elementos ao budismo. A perpetuidade do Universo era um dos princípios do Sánquia. A inexistência de alma e a impermanência das criaturas eram teses do materialismo nihilista dos Nastikas. A natureza fenomênica do Universo, das coisas e seres nele existentes é afirmada pela Vedanta. A lei de causa e efeito é postulado comum a todas as filosofias na índia.
Mas, ainda assim, o budismo apresenta-se como um dos cimos no lento e longo processo do pensamento humano cujo objetivo estará na humanização do homem, na quebra dos grilhões que o prendem aos mais primários impulsos da animalidade, expressos na agressão, na violência, no desrespeito ao direito de cada um afirmar-se e realizar-se.
Raul Xavier
Capítulo 1
Descrição de Sagala
Havia outrora no país dos Ionakas,[1] uma cidade de nome Sagala [2] com muitas casas comerciais, parques, jardins, bosques, lagos, tanques para os lótus. Estava próxima de montanhas e de rios. Os seus inimigos tinham desistido de atacá-la, pois estava defendida por muitas fortalezas e torres sólidas. Além de grandes portas e extensas arcadas, a cidadela, no centro da cidade, estava rodeada de fossos profundos.
As ruas e praças eram bem traçadas. Nelas havia lojas, cheias de objetos ricos e variados, casas imponentes como os cimos do Himalaia. Nessas ruas passeavam homens e mulheres e na multidão que passava viam-se nobres, brâmanes, burgueses, gente do povo. E entre os brâmanes e ascetas notavam-se os sábios eminentes.
Havia lá grande abundância de gêneros alimentícios, nada faltando em bebidas, doces, frutas. Nas lojas vendiam-se tecidos vistosos, panos de Kasi e Kotumbara, pedras preciosas, vasos de cobre e de ouro. Era enfim uma cidade tão opulenta quanto Uttarakuru, uma cidade de deuses como Alakamanda.
Capítulo 2
Vidas Anteriores
Aqui nos detemos para contar a estória anterior dos nossos personagens.
Outrora, nos templos da religião do buda Kassapa, nota-se à margem do Ganges um convento com muitos monges. Esses homens virtuosos levantavam-se ao nascer do sol e, pensando nos méritos do Buda, pegavam em vassouras, varriam o pátio e juntavam o lixo.
Certa vez, um religioso observou a um dos noviços:
― Vê lá. Tira isso daqui! – E apontava para alguma coisa no chão.
O noviço pareceu não ouvir. O monge repetiu a advertência e o noviço não atendeu. Irritado, o monge exclamou:
― Este noviço é indisciplinado! – E bateu nele com o cabo da vassoura.
Medroso e com lágrimas nos olhos, o noviço limpou o chão, mas pensou:
― Pelo mérito deste ato, em cada uma das minhas existências futuras, até alcançar o Nirvana [3] possa eu ser forte e brilhante como o sol ao meio-dia.
Finda a sua tarefa, ele foi banhar-se nas águas do Ganges. Vendo as águas espumejantes do rio, formulou ainda um segundo desejo:
― Que eu tenha em minhas futuras existências, até alcançar o Nirvana, o dom da resposta rápida e infalível como estas águas.
Ora, enquanto isso, o monge, depois de guardar a vassoura, veio banhar-se no Ganges e ao entrar na água ouviu as palavras do noviço. E pensou consigo mesmo:
― Ele ousa exigir alguma coisa, só porque agiu por minha ordem. Se é assim, que irei obter?
E pensou:
― Em cada existência minha, até alcançar o Nirvana, desejo ter o dom da resposta certa, como as águas do Ganges, e para resolver habilmente todas as questões que este noviço me propuser!
No intervalo entre a existência do buda anterior, os dois religiosos passaram por várias existências, no mundo das deuses [4] e no dos homens.
Assim como o nosso Bem-aventurado [5] tinha visto o deão Tissa Moggaliputta,[6] viu também aqueles dois monges e disse:
― Eles renascerão quinhentos anos depois do meu Nirvana. E o cânone da Doutrina e da Disciplina que eu ensinei, em linguagem sutil, eles irão esclarecer, interpretar, explicar, mediante perguntas e exemplos!
Capítulo 3
O Rei Milinda
Ora, o noviço afinal veio a ser no Jambudipa,[7] na cidade de Sagala, o rei Milinda, perspicaz, inteligente, habilidoso, cuidadoso, exato cumpridor de todos os atos do ritual, da devoção, relativos ao passado, no futuro, ou ao presente.
Ele estudara todas as matérias do Saber: a Revelação,[8] a Aritmética, a Música, a Medicina, os Vedas, os Encantamentos, a Arte da Guerra, a Poesia, o Cálculo pelos dedos, ao todo dezoito ciências.
Em todo o Jambudipa, o rei Milinda não tinha rival em força e agilidade, coragem e saber. Possuía muitos bens, grandes rendimentos, muitas tropas.
Um dia, o rei Milinda saiu da cidade para a revista das quatro armas do seu exército. Depois do desfile dos regimentos, o rei, que gostava de falar e de conversar com os sofistas, ou casuístas, e outros indivíduos dessa espécie, perguntou aos seus secretários:
― Que faremos, depois de voltarmos à cidade? Existe alguém capaz de resolver minhas dúvidas? Algum letrado, asceta, brâmane, abade, guru, algum adepto do Bem-aventurado Buda para conversar comigo?
Os quinhentos Ionacas responderam:
― Maharajá, existem somente seis mestres: Purana Kassapa, Makkhali Gosala, Nigantha Nataputta, Sangaya Belatthaputta, Ajita Kesakambali e Pakhuda Kaccayana. São abades, fundadores de escolas, conhecidos, afamados, respeitados pelo povo. Sua Majestade deve fazer-lhes perguntas para obter a solução das suas dúvidas.
Então o rei Milinda subiu ao seu carro, puxado por belos animais e foi visitar Purana Kassapa.
Depois de cumprimentá-lo, sentou-se ao seu lado e perguntou-lhe:
― Respeitável Kassapa, quem toma conta dos homens?
― Majestade, a Terra.
― Se é a Terra que toma conta dos homens, por que os danados caem no inferno Avici, atravessando a Terra?
Ouvindo essa resposta, Purana Kassapa ficou engasgado. Nem pôde cuspir. Ficou sem jeito, mudo, cabisbaixo.
Então o rei Milinda foi visitar Makkhali Gosala a quem logo perguntou:
― Respeitável Gosala, há boas e más ações? Há um fruto, um amadurecimento, dos bons e dos maus atos?
― Não, Senhor! Aqueles que neste mundo são nobres, brâmanes, burgueses, gente do povo, párias, continuarão sendo nobres, brâmanes, burgueses, gente do povo, párias. Aqui não se cuida de ações boas ou más.
― Se for assim, Gosala, quem teve as mãos corta- das, neste mundo, irá para o outro com as mãos cortadas? Quem tiver nariz, orelhas, pés cortados, irá para o outro mundo assim mutilado? [9]
Gosala permaneceu mudo.
Então o rei Milinda pensou:
― Este Jambudipa está vazio! Não há ninguém para discutir comigo' Este Jambudipa é um saco de grãos de trigo! Não há ninguém que esclareça as minhas dúvidas, nem brâmane, nem asceta!
E disse aos secretários:
― A noite está clara, verdadeiramente deliciosa. Quem poderíamos visitar, asceta ou brâmane, para fazer-lhe perguntas? Quem pode conversar comigo, resolver minhas dúvidas?
Os secretários nada disseram.
Capítulo 4
Os Arhats [10] Obtém a
Encarnação do Deva Mahassena [11]
Naquele tempo, durante doze anos, a cidade de Sagala esteve vazia de sábios, brâmanes, burgueses. Quando falavam de um, o rei ia visitá-lo para dirigir-lhe perguntas. Mas revelaram-se incapazes de satisfazer o rei, nesse jogo de perguntas e respostas. Alguns saíram da cidade, outros não falaram mais.
Naquela época, milhões de Arhats moravam no Himalaia, em Rakkhitatala. O reverendo Assagutta, ouvindo por sua orelha divina as palavras do rei Milinda, reuniu a Confraria, no alto do monte Yogandhara [12] e perguntou:
― Irmãos, há entre os religiosos alguns capazes de discutir com o rei Milinda e resolver os seus problemas?
Nenhum respondeu. Todos ficaram silenciosos, embora o Reverendo Assagutta lhes tenha repetido três vezes a mesma pergunta. Este então lhes disse:
― No mundo dos deuses, a leste do Vejaianta,[13] levanta-se um palácio celestial, onde mora um deus chamado Mahassena. Ele pode discutir com Milinda e resolver os problemas desse rei.
Então os Arhats desapareceram do Yogandhara e apareceram no mundo dos deuses. [14]
Sakka, [15] rei dos deuses, viu-os vindo ao longe. Aproximou-se de Assagutta para saudá-lo e de pé avisou:
― Reverendo, vejo aproximarem-se muitos religiosos. Eu sou um servo da Irmandade. Que devo fazer?
Que é necessário?
Assagutta respondeu:
― No Jambudipa, na cidade de Sagala, mora o rei chamado Milinda, admirável nas discussões. Goza da fama de ser o maior dos doutores. Está sempre importunando a Irmandade com perguntas capciosas.
Replicou o rei dos deuses:
― Esse Milinda caiu do céu para renascer entre os homens. Mas dispomos aqui do deus Mahassena que reside no palácio Katumati. Ele pode discutir com o rei e solucionar os seus problemas. Vamos pedir-lhe que consinta em renascer entre as homens.
Ditas estas palavras, Sakka e a Irmandade foram falar a Mahassena, a quem o monge disse:
― A Irmandade pede-te que renasças entre os homens.
Mahassena observou:
― Senhor, nada tenho para fazer no mundo dos homens, onde os desejos são muitos. Quero ficar aqui no mundo dos deuses, elevando-me sempre até chegar ao Nirvana.
Assagutta replicou a Mahassena.
― Amigo, já andamos pelos mundos dos homens e dos deuses e não encontramos ninguém capaz de vencer a dialética do rei Milinda. Por isso todos nós te rogamos: volta ao mundo dos homens para defender a religião do Buda.
Então concordou Mahassena, dizendo:
― Não há dúvida, eu posso vencer a dialética do rei Milinda.
E alegre assumiu o compromisso de renascer no mundo dos homens.
Capítulo 5
Penitência de Rohana
Os religiosos desceram do mundo dos deuses e reapareceram no Himalaia, em Rakkhitatala. Assagutta perguntou-lhes:
― Algum monge não compareceu à reunião da Confraria?
Um deles respondeu:
― Sim. O reverendo Rohana acha-se em êxtase na montanha, há dezessete dias. Mande-lhe um mensageiro.
Ora, justamente naquele instante, o monge Rohana despertou do êxtase e pensou:
― Os irmãos estão à minha espera.
Saiu do Himalaia e dirigiu-se a Rakkhitatala. E Assagutta perguntou-lhe:
― Por que, irmão Rohana, quando a religião do Buda está em crise, não manifestas interesse nos problemas da Irmandade?
― Venerável – explicou Rohana –, foi por um descuido da minha parte.
― Está bem. Faz penitência – observou Assagutta.
― Como, venerável?
― Nas encostas do Himalaia, existe a aldeia Kajangala, onde mora um brâmane chamado Sonuttara. Vai nascer-lhe um filho, que se chamará Nagasena. Durante sete anos e dez meses irás à casa desse brâmane pedir-lhe esmola. Farás de Nagasena um monge budista e então serás absolvido.
O reverendo Rohana concordou.
Capítulo 6
Nascimento e Educação de Nagasena
O deus Mahassena desceu do céu e reencarnou-se no seio da mulher do brâmane Sonuttara. No momento da concepção, ocorreram prodígios: as armas e utensílios domésticos rebrilharam; a semente recém-plantada brotou; e caiu uma grande chuva.
Durante sete anos e dez meses, o reverendo Rohana foi pedir esmola na casa do seu colega. Mas nunca lhe deram uma colher de arroz ou de farinha de cevada. Jamais lhe disseram uma palavra ou tiveram um gesto de cortesia. Foi insultado várias vezes e jamais lhe disseram ao menos que fosse pedir esmola em outra casa.
Um dia, entretanto, tinham já decorrido sete anos e dez meses, ele ouviu que lhe falavam.
― Venerável, vá pedir em outra casa!
Naquele dia, o brâmane, voltando das suas ocupações, encontrou Rohana e perguntou-lhe:
― Então, foste à minha casa, monge?
― Sim, brâmane. Estive lá.
― Recebeste alguma coisa?
― Sim, brâmane, recebi.
Entrando em casa, descontente, o brâmane indagou aos seus familiares:
― Deram alguma coisa a esse monge?
Responderam-lhe:
― Não! Nada!
No dia seguinte, o brâmane sentou-se à porta da sua casa, pensando consigo: “Hoje vou repreender o monge por sua mentira”.
Quando o monge apresentou-se à porta, falou-lhe o brâmane:
― Disseste-me ontem que tinhas recebido esmola em minha casa. Mas, na verdade, nada te ofereceram. Vocês monges têm permissão para mentir?
Respondeu-lhe o monge:
― Brâmane, durante sete anos e dez meses, nada recebi em sua casa. Nem mesmo me disseram que fosse pedir esmola em outras casas. Mas, ontem, convidaram-me a andar em busca de esmola mais adiante. Foi essa cortesia que me induziu a dizer-te que ontem recebi alguma coisa em tua casa.
O brâmane refletiu: “Se uma frase cortês faz esses homens proclamarem que receberam um beneficio, que não diriam eles, se recebessem alimento?”
Ordenou aos seus familiares que servissem ao monge várias colheres de arroz, preparado em sua cozinha, mais uma sopa de legumes, prometendo que, daquele dia em diante, ele receberia aquela dádiva.
Passaram-se alguns dias, durante os quais o brâmane foi observando as maneiras do monge. Afinal resolveu convidá-lo a fazer sua refeição dentro de casa.
Todos os dias, o monge almoçava em casa do brâmane e antes de despedir-se recitava um trecho qualquer da palavra de Buda.
Dez meses depois, a mulher do brâmane deu à luz um menino que recebeu o nome de Nagasena. Quando o filho atingiu os sete anos, disse-lhe o pai:
― Meu filho Nagasena, deves aprender as ciências, cujo estudo é tradicional em nossa família.
― Quais são, meu pai?
― Os três Vedas, que se denominam ciências e os outros conhecimentos que são as artes.
― Está bem, pai. Vou aprendê-las.
Então o brâmane Sonuttara contratou outro brâmane para preceptor do filho, pagando bem. Instalou o professor no sobrado e recomendou-lhe que ensinasse ao menino as orações dos livros sagrados.
Quanto a Nagasena, bastou-lhe ouvir uma vez a leitura dos Vedas para logo entender e guardar na memória os textos sagrados. Aprendeu as silabas, o vocabulário, tornando-se logo lexicógrafo e gramático hábil, na casuística, na psicologia dos grandes homens sem descurar da arte de adivinhar.
Então Nagasena perguntou ao pai:
― Ainda há alguma coisa mais para aprender? A ciência tradicional em nossa família resume-se nisso?
― Sim, respondeu o pai.
Depois da última lição, o rapazola desceu do sobrado.
Absorto em meditações, ele sentia o coração vibrar, cheio de lembranças. Considerando o começo, o meio e o final do saber, que adquirira, não via nenhum fundamento nesse saber e dizia consigo: “Os Vedas são vazios, tão vazios como um fardo de sementes sem polpa, sem substância”. E ficou descontente.
Capítulo 7
Ordenação de Nagasena
Naquele momento, o reverendo Rohana, em sua cabana soube do que estava pensando o jovem Nagasena. Vestiu-se, tornou a sua tigela e o manto e, desaparecendo em Vattanyia, apareceu na aldeia de Kajangala.
Nagasena estava sentado à soleira da porta da sua casa e vendo-o ao longe sentiu-se satisfeito e pensou: “Talvez este eremita saiba que posso descobrir algo substancial”.
E, aproximando-se, cumprimentou-o, perguntando-lhe:
― Amigo, quem és tu assim calvo e com esse manto amarelo?
― Chamam-me o Exilado, respondeu Rohana.
― Por que te chamam Exilado?
― Porque me exilei do mundo para limpar-me das manchas do pecado.
― Por que não tens cabelos?
― Depois de saber quais são os obstáculos, o Exilado raspa os cabelos e a barba.
― Quais são os obstáculos?
― Tudo quanto nos envaideça e nos agrade, impedindo-nos de gostar de qualquer conhecimento sutil.
― Por que não te vestes como toda gente?
― O traje das pessoas mundanas tem sua origem no prazer dos sentidos. O Solitário ignora os perigos do traje. Por isso, a minha veste não é como a das demais pessoas.
― Conheces as artes?
― Conheço-as, sem dúvida. E também a mais elevada.
― Podes ensiná-la?
― Posso.
― Então quero aprendê-la contigo.
― Não agora, meu filho. Vim aqui pedir esmola.
Logo Nagasena tomou a tigela das mãos de Rohana. Foi ao interior da casa e voltou, trazendo ao monge vários pratos saborosos.
Depois de Rohana comer, lavar a tigela e as mãos, Nagasena pediu:
― Revela-me agora a tua arte.
― Filho, quando te libertares dos obstáculos mundanos e obtiveres a permissão do teu pai e da tua mãe e tomares o hábito que estou vestindo, eu te revelarei minha arte.
Nagasena foi falar ao pai e à mãe, repetindo-lhes o que ouvira do monge. Os progenitores não se opuseram a que Nagasena resolvesse sua vocação como lhe parecesse melhor.
Então o reverendo Rohana conduziu Nagasena ao eremitério de Vatanyia, em Vijambhavatthu, onde os dois passaram a noite. Levou-o depois ao mosteiro de Rakkhitatala, onde Nagasena recebeu as ordens monacais, na presença de todos os Arhats.
Uma vez ordenado, Nagasena insistiu com Rohana:
― Venerável, tomei o meu hábito, revela-me a tua arte.
Então Rohana pensou consigo mesmo: “Por onde devo começar a ensinar-lhe? Pelos Sermões? Pela Dogmática? Nagasena é inteligente, vai aprender a Dogmática sem dificuldade”.
E assim foi. Nagasena dispensou a repetição dos textos dogmáticos. Bastou uma lição para cada texto e ele aprendia, logo dizendo a Rohana:
― Basta, reverendo. Não é necessário repetir. Já sei.
Terminado o curso, Nagasena dirigiu-se aos Arhats, declarando-lhes:
― Veneráveis, posso dizer todo o Abhidhammapitaka [16] nos seus capítulos Kusaladhamma, [17] Akusaladhamma, [18] Abyakatadhamma.
― Muito bem, Nagasena. Repete-os então.
Durante sete meses, Nagasena recitou os sete livros.
A terra estremeceu, os deuses aclamaram-no, os Brahmas aplaudiram-no. Caiu do céu uma chuva de pó de sândalo e flores celestiais. E como já tinham decorrido vinte anos, os Arhats confirmaram a sua ordenação.
Capítulo 8
Nagasena em Casa de Assagutta
Na manhã seguinte, Nagasena vestiu-se, tomou a tigela e o manto e foi com seu mestre mendigar na aldeia. Durante o caminho, pensou: “Meu mestre é um desmiolado, um tolo. Começou a ensinar-me pela Dogmática e não me revelou as outras partes dos Discursos do Buda”.
Rohana percebeu o pensamento de Nagasena e disse-lhe: “Este pensamento é indigno de ti, Nagasena. Não é digno de ti”.
Nagasena pensou consigo mesmo: “Maravilhoso! Prodigioso! Meu mestre adivinhou o que eu estava pensando. É um grande sábio. Devo pedir-lhe perdão”.
E falou a Rohana:
― Perdoa-me, venerável! Não pensarei mais assim.
Replicou-lhe Rohana:
― Não vou perdoar-te tão facilmente. Há uma cidade chamada Sagala, governada pelo rei Milinda. Esse monarca está sempre importunando a nossa Congregação com perguntas sobre questões ainda discutidas. Se conseguires vencer o rei, eu te perdoarei.
― Refere-se ao rei Milinda, venerável? Ora! Se todos os reis de Jambudipa viessem me fazer perguntas, eu as despedaçaria todas. Perdoa!
Mas, ainda uma vez lhe foi negado o perdão.
Diz-me então, reverendo, onde devo passar os três meses de retiro.
― Nagasena, mora em Vatanyia o reverendo Assagutta. Vai vê-lo e diz-lhe da minha parte: “Venerável, meu mestre saúda-o! Deseja saber como o senhor está passando, se goza saúde, se está satisfeito. Mandou-me passar em companhia do senhor meus três meses de retiro...” Se ele perguntar pelo nome do teu mestre, diz-lhe que é Rohana. E se insistir: “qual é o meu nome?” Tu lhe dirás: – “Venerável, meu mestre sabe do nome do senhor”.
― Está bem, venerável. – Foi a resposta de Nagasena, que se despediu de Rohana.
Chegando a Vatanyia, Nagasena dirigiu-se à morada de Assagutta a quem repetiu o que lhe dissera seu mestre.
― Está bem. – Consentiu Assagutta. – Guarda a tua tigela e o teu manto.
Na manhã seguinte, Nagasena varreu a cela e apresentou ao monge uma tigela, água e um palito. Assagutta varreu a cela outra vez, repetiu a lavagem da boca, tomou mais um palito, nada falando a Nagasena. Assim foi, durante sete dias. No sétimo dia, Assagutta dirigiu a Nagasena as mesmas perguntas, feitas no momento da sua vinda, e Nagasena deu as mesmas respostas. Então Assagutta permitiu a Nagasena ficar em sua companhia, durante a estação das chuvas.
Capítulo 9
Partida para Pataliputta [19]
Ora, naquele tempo, desde trinta anos, uma piedosa mulher tomava conta do reverendo Assagutta. No fim daqueles três meses, a mulher perguntou-lhe se havia outro religioso em sua companhia.
― Sim, afirmou Assagutta. Chama-se Nagasena.
― Então, reverendo, aceite almoçar em minha casa com Nagasena.
O silêncio de Assagutta era indício de que aceitava o convite da mulher.
No dia seguinte, acompanhado de Nagasena, Assagutta foi almoçar em casa da mulher, que lhes preparou uma excelente refeição. Findo o almoço, Assagutta lavou a tigela, as mãos e recomendou a Nagasena:
― Agora, deves agradecer com um discurso.
Então a mulher observou:
― Sou uma senhora respeitável. Diz um bom discurso em que se ouçam conceitos elevados.
Nagasena discursou, citando trechos de profundo significado em torno da ideia de vazio, exposta no Abhidhamma.
A mulher estava sentada, mas enquanto ouvia o monge abriu-se no íntimo a visão da Lei, que mostra o começo e o fim de tudo.
Quanto a Nagasena, depois de falar, refletindo na doutrina que expusera, teve a intuição de que pisara no primeiro degrau da Perfeição.
Assagutta percebeu que ambos tinham obtido o entendimento da Lei e elogiou-os.
― Muito bem, Nagasena! Com uma flecha alcançaste dois alvos!
Milhões de divindades manifestaram sua alegria, no mundo dos deuses.
Quando Nagasena voltou à companhia de Assagutta, este lhe disse:
― Vai a Pataliputta. Lá no mosteiro reside o reverendo Dhammarakkhita. Aprende com ele a Palavra de Buda.
― Qual a distância daqui até lá?
― Centenas de léguas.
― A estrada é longa, as esmolas poucas. Como poderei fazer a viagem?
― Vai, Nagasena. Receberás em caminho arroz escolhido e alimentos bem preparados.
― Bem, concordou Nagasena.
Saudou o mestre, tomou a tigela, o manto, e saiu rumo a Pataliputta.
Capítulo 10
Partida para Sagala
Naquele tempo, um grande comerciante de Pataliputta viajava pela estrada daquela cidade, acompanhado de quinhentas carretas. Vendo Nagasena a certa distância, parou o comboio e foi cumprimentá-lo:
― Aonde vai, Padre?
― A Pataliputta, meu caro senhor.
― Muito bem, eu também vou para lá. Podemos viajar juntos.
Encantado com as boas maneiras de Nagasena, o comerciante ofereceu-lhe uma refeição muito boa. Depois sentou ao lado do monge para conversar:
― Como te chamas, Padre?
― Nagasena.
― Conheces a Palavra do Buda?
― Conheço os textos do Abhidhamma.
― Ótimo! Sou como tu um crente no Abhidhammika. Recita, Padre, alguns textos.
Então Nagasena recitou ao comerciante trechos do Abhidhamma. À medida que o monge falava, abria-se na mente do comerciante, puro e límpido, o entendimento da Lei.
O comerciante ordenou que as carretas passassem adiante. Nas proximidades de Pataliputta, detiveram-se em uma encruzilhada onde o comerciante disse a Nagasena:
― Padre, este caminho vai para o mosteiro de Asokarama. Aqui está urna peça de lã fina com dezesseis côvados de comprimento e oito de largura. Aceite-a, por favor.
Nagasena aceitou e o comerciante muito satisfeito continuou sua viagem.
Chegando a Asokarama, Nagasena cumprimentou Dhammarakkhita, explicando-lhe o motivo da sua vinda. No decurso dos três primeiros meses, sem necessidade de repetir, aprendeu a Palavra do Buda, exposta no Tripitaka, e durante os três meses seguintes alcançou o seu significado.
Observou-lhe então Dhammarakkhita.
― Nagasena, o vaqueiro toma conta das vacas. Mas são outros que bebem o leite. Tu adquiriste a Palavra do Buda, exposta nos Três Cestas, mas não atingiste ainda a situação do Arhat.
― É possível, Venerável. Mas não falemos mais nisso.
Naquele mesmo dia, à noite, Nagasena atingiu o estado de arhat, adquirindo o entendimento do significado das palavras e contexto, o conhecimento das etimologias e a arte da discussão.
No momento em que ele penetrou na Verdade, aclamaram-no todos os deuses, a Terra rugiu, os Brahmas aplaudiram e caiu do céu uma chuva de flores e de pó de sândalo.
Então os Arhats, reunidos no Himalaia, em Rakkhitatala enviaram-lhe esta mensagem.
“Venha, Nagasena, nós desejamos vê-lo.”
Logo o monge desapareceu do Asokarama e apresentou-se aos Arhats, que lhe disseram:
― O rei Milinda está importunando a nossa Congregação com as suas perguntas e chicanas. Vai, Nagasena, corrigir esse monarca.
Observou-lhes Nagasena:
― O rei Milinda é pouco. Se todos os reis do Jambudipa viessem fazer-me perguntas, eu inutilizaria os seus argumentos com as minhas respostas.
Capítulo 11
Milinda vai ao Encontro de Nagasena
Naquele tempo, o reverendo Ayupala morava no cenóbio de Sankheyya. Certa noite, o rei Milinda disse aos seus mandarins:
― Está deliciosa esta noite clara! Eu gostaria agora de conversar com um asceta ou brâmane, fazer-lhe perguntas Quem pode discutir comigo, resolver minhas dúvidas.
― Maharajá – disseram-lhe os quinhentos secretários – há um chamado Ayupala, conhecedor dos Três Pitakas, muito instruído e conhecedor da doutrina. Ele mora em Sankheyya. Vai interrogá-lo.
O rei subiu ao seu carro, escoltado pelos 500 Ionakas. Chegando ao cenóbio de Sankheyya, cumprimentou Ayupala e depois de sentar-se ao seu lado perguntou-lhe:
― Venerável Ayupala, qual o objetivo do seu afastamento do mundo, qual o seu último objetivo?
― A vida piedosa, a vida calma. Este é o objetivo do meu afastamento do mundo.
― Existem leigos com vida piedosa, com vida calma?
― Sim. Em Benares, no Parque das Gazelas, o Bem-aventurado moveu a Roda da Lei. [20] Então, dezoito dezenas de milhões de Brahmas e inumeráveis deuses converteram-se à sua doutrina. Todos eram leigos, nenhum religioso. Depois, inumeráveis deuses converteram-se à sua doutrina. Todas eram leigas, nenhum religioso.
― Neste caso, Venerável, é inútil o seu afastamento do mundo. Os ascetas budistas saem do mundo, praticam seus exercícios ascéticos por efeito de ações anteriores. Aqueles que se alimentam apenas uma vez por dia, sem dúvida outrora foram ladrões de víveres pertencentes a outras pessoas. A consequência é agora só poderem alimentar-se uma vez por dia. Nisso não há nem virtude, nem ascetismo, nem santidade. Aqueles que estão vivendo desabrigados foram outrora, sem dúvida, destruidores de cidades, de residências de milhares de outras pessoas. O resultado disso foi estarem agora sem moradia, sem disporem de uma casa para se abrigarem. Nisso não há virtude, nem ascetismo, nem santidade. Aqueles que sempre estão sentados e não se deitam foram outrora, sem dúvida, assaltantes nas estradas, que detinham os viajantes, amarravam-nos, deixando-os sentados no chão. Nisso não há nem virtude, nem ascetismo, nem santidade.
O reverendo Ayupala não respondeu. Então disseram os quinhentos mandarins:
― O monge é um sábio, mas tímido e não ousa replicar.
O rei Milinda fitou Ayupala, silencioso, bateu palmas e exclamou:
― O Jambudipa está vazio! Não há ninguém, asceta ou brâmane, capaz de discutir comigo, de resolver as minhas dúvidas...
Olhou em torno e notou que os secretários não estavam nem intimidados, nem embaraçados. E pensou:
― Talvez exista outro religioso capaz de discutir comigo. Por isso, os secretários não parecem embaraçados.
E perguntou-lhes:
― Conhecem algum religioso, que possa discutir comigo, responder minhas dúvidas?
Ora, naquele tempo estava o reverendo Nagasena, rodeado de monges, chefe de uma Confraria, preceptor de um grupo, sendo conhecido, ilustre, respeitado pela multidão, sábio, desembaraçado, inteligente, correto, perspicaz, instruído, hábil, erudito, conhecedor do Tripitaka, [21] possuidor da ciência, dos conhecimentos analíticos, que conservam no espírito as nove espécies de textos sagrados, perfeito conhecedor da Palavra do Buda, perito na aquisição e no ensino do significado do texto doutrinal, possuidor de uma dialética variada e invencível, eloquente, dotado de palavra agradável, difícil de ser igualada, vencida, ultrapassada, detida, com expressão indomável como o oceano, imutável como o Rei das montanhas, e que tendo renunciado ao pecado, dissipou as trevas; poderoso nos discursos, a esmagar escolas rivais, vencedor de heresiarcas, honrado, estimado, reverenciado pelos religiosos, leigos, homens, mulheres, príncipes, funcionários; que recebe muitas vestes, alimentação, moradia, remédios, o primeiro entre todos; que demonstra aos ouvintes inteligentes e sábios, atentos às suas palavras, o tesouro dos nove elementos da religião budista, ensinando-lhes o ideal da Lei; que empunha o facho da Lei, levanta o mastro da Lei, celebra o sacrifício da Lei, desfralda o estandarte da Lei, faz soar o clarim da Lei, bate no tambor da Lei; ruge como um leão, tem uma voz profunda como a de Indra, de cujos flancos se derramavam as águas da misericórdia, sobre o mundo. Nagasena, depois de ter atravessado burgos, cidades e aldeias, tinha chegado a Sagala, instalando-se no eremitério Sankheyya em companhia de oitenta mil religiosos.
Então Devamantyia disse ao rei:
― Esperai Espera, maharajá! Existe o monge Nagasena, no convento Sankheyya. Vai consultá-lo, maharajá. Ele pode discutir contigo, resolver tuas dúvidas.
Ouvindo esse nome, o rei Milinda sentiu-se intimidado, inquieto, e perguntou a Devamantyia:
― Ele está realmente em condições de discutir comigo?
― Sim, pode discutir com os guardiões do mundo: [22] Indra, Yama, Varuna, Kuvera, Prajapati, e até mesmo com o próprio Brahma. Sendo assim por que não poderá discutir com um homem?
― Mandem-lhe então um mensageiro. – Ordenou o rei.
Devamantyia mandou um mensageiro informar Nagasena de que o rei Milinda pretendia vê-lo. E o monge disse ao mensageiro que o rei poderia ir até onde ele, Nagasena, estava.
O rei subiu ao seu carro, acompanhado da escolta, e foi à moradia do monge. Nagasena estava sentado no pavilhão, em companhia de oitenta mil religiosos. [23]
Milinda perguntou a Devamantyia:
― Que gente é essa?
― São os companheiros do reverendo Nagasena.
O rei intimidou-se. Como um elefante acuado pelos rinocerontes, ou uma naga [24] pelos garudas,[25] um chacal pelas jiboias, um urso pelos búfalos, uma rã perseguida por uma cobra, uma gazela por um tigre, uma serpente diante de um hipnotizador de serpentes, um rato à frente de um gato, um demônio sob o domínio de um exorcista, assim ficou o rei inquieto.
Assim como a lua na boca de Rahu,[26] uma cobra dentro de um cesto, um passarinho na gaiola, um peixe na rede de pesca, um homem atravessando uma floresta onde há muitas feras, um gênio diante de um Vessavana, como um deus cuja vida está no fim, medroso, alarmado, ansioso, agitado, perplexo, triste, perturbado, Milinda pensou:
― Desejo que esse homem não me vença!
Depois, criando coragem, disse a Devamantyia:
― Não me diz quem é o reverendo Nagasena. Eu mesmo irei reconhecê-lo...
Ora, Nagasena era mais moço do que os quarenta mil monges que estavam à sua frente e mais velho do que os quarenta mil monges que estavam atrás. Milinda olhou todos aqueles frades e viu Nagasena sentado no meio deles, parecendo um leão de juba espessa, calmo, sem medo, e logo o reconheceu.
― É aquele. – Disse a Devamantyia.
― Sim, majestade. É ele mesmo.
E o rei ficou satisfeito por ter reconhecido o monge, sem que lho mostrassem. Mas, fitando-o, sentiu-se outra vez tímido, nervoso.
Por isso se diz:
“Virtuoso, dominado por uma suprema força de vontade, apareceu Nagasena diante do rei, que disse: Vi muitos oradores, travei muitas discussões, mas nunca estive medroso e trêmulo como hoje. Sem duvida, hoje serei vencido, e a vitória de Nagasena, desde já, está me perturbando.”
[1] Ionakas ‒ Gregos. O país dos Ionacas denominava-se Bactria, onde se situavam os reinos governados por monarcas de ascendência grega, cuja dinastia se iniciara com a conquista de Alexandre. A dinastia dos reis gregos iniciara-se com Diodoto, continuando com Eutidemo e Demétrio, de quem era descendente o rei Menandro ‒ Milinda.
[2] Sagala ‒ Cidade no Pendjab, sede do governo de Menandro.
[3] Nirvana ‒ (sancar. nir = não + vana = madeira.) Aquilo que, sem a madeira (combustível), está apagado. O ser humano em quem não arde mais o fogo do desejo e das paixões acha-se na situação da fogueira apagada.
“Irmãos, há uma condição na qual não existe nem “terra”, nem “água”, nem “fogo”, nem “ar”, nem a esfera do espaço infinito, nem a esfera do vácuo, nem a esfera da percepção, nem a da não-percepção. Irmãos, eu não denomino essa condição nem vinda, nem ida, nem permanência, nem queda, nem subida. É sem imobilidade, sem mobilidade, sem base”.
Udana, cap. VIII ― apud Buddhism. Chr. Humplireys.
Observa Louis de La Vallée Poussin, ‒ La Morale Bouddhique ‒, que “para falar a verdade, essa beatitude estável”, aos olhos do ocidental, parece aniquilamento. Só se pode atingir o Nirvana pela cessação do pensamento, pois o Nirvana é algo além de todas as categorias, algo estranho a qualquer pensamento, sensação, existência. Se a posse do Nirvana é a felicidade perfeita, isso decorre, segundo a Escritura, “de que essa posse exclui, definitivamente, a possibilidade de qualquer sensação”.
[4] Mundo dos deuses ‒ Entre duas existências, o homem virtuoso é premiado com a vida em uma das esferas onde se acham os deuses ‒ devas, divindades devata, e os gênios ‒ yaksas.
[5] Bem-aventurado ‒ Baghavad ‒ um dos epítetos de Buda.
[6] Tissa Moggaliputta ‒ Presidente do terceiro concílio dos monges budistas, em Pataliputra. Segundo a tradição, Buda predissera que, 218 anos após a sua entrada no Nirvana, esse monge leria no concílio o tratado de dogmática intitulado Kathâvathu.
[7] Jambudipa (pali) ou Jambudvipa (sânscrito), ‒ antiga denominação da Índia.
[8] Niti Viseschica ‒ teoria da ética, segundo o Vaisseschica, que é uma das seis filosofias da Índia.
[9] A mutilação de membros, pés e mãos, o corte de lábios, de nariz, como punição imposta aos ladrões e outros criminosos, que não fossem assassinos, estes punidos com a pena capital. Essas penalidades eram vigentes em todo o Oriente. Ainda no século XX, na Abissínia praticava-se esse sistema punitivo.
[10] Arhat (Aquele que merece honras divinas) – Na hierarquia monacal dos budistas, é o religioso que ocupa o mais elevado posto. Do ponto de vista místico, o Arhat não se reencarna.
[11] Deva = deus ‒ Pela etimologia, o termo significa luminoso, aplicando-se também a outros seres celestiais, os anjos que aparecem envoltos em forte luminosidade.
[12] Yogandhara – Uma das sete cadeias de montanhas, em torno do lendário monte Meru.
[13] Vejaianta – Palácio do deus védico, Indra.
[14] Mundo dos deuses ‒ Mundo imaterial supraterrestre, onde residiam os deuses gênios, ascetas e religiosos. Nesse mundo, eram vários os planos, cujos habitantes se distribuíam segundo seus méritos e categorias, na hierarquia das entidades divinas.
[15] Sakka ‒ Epíteto da divindade suprema, Brahma.
[16] Abhidhammapitaka ‒ Palavra pali, que designa a terceira parte do canon budista ortodoxo, dividido em três livros, denominados pitakas (cestos).
[17] Kusaladhamma ― Palavra paul, que designa o método a ser seguido para a obtenção de um bom karma.
[18] Akusaladhamma ― Designação pali para o método de eliminação dos fatores ou elementos cármicos desfavoráveis.
[19] Pataliputta – Grafia pali do nome da cidade Pataliputra.
[20] O monge Ayupala refere-se ao sermão de Gautama, em Benares, com o qual se teria iniciado o apostolado de Buda. “Mover a roda da lei” significa pregar a doutrina.
[21] Tripitaka (três cestos) – Segundo a lenda, no decurso do primeiro concilio, reunido em Rajagriha, presidido por Maha Kacyapa, os textos redigidos eram reunidos, separadamente, em três cestos. Daí os três livros Vinayassutra ‒ regras para a disciplina monástica, Dharmassutra – tratado de moral, Abhidharma ‒ Tratado de metafísica.
[22] Guardiões do mundo – são os maiores deuses védicos: Indra, Varuna, Mitra, Surla, Agni.
[23] Oitenta mil religiosos – expressão característica da tendência do oriental ao exagero, ao superlativo no sentido da excessiva valoração dos fatos.
[24] Naga ‒ Serpente.
[25] Garuda ‒ Pássaro mítico, montaria de Visnú, e cujo nome serve de designação genérica para as grandes aves.
[26] Rahu ‒ Termo de astronomia, designativo do nó ascendente da lua. Em mitologia, Rahu foi o titã que, engolindo o sol e a lua, causava os eclipses.
Livro II - Características
Capítulo 1
A Inexistência do Indivíduo
O rei Milinda aproximou-se de Nagasena, cumprimentou-o e sentou-se ao seu lado. Nagasena retribuiu-lhe os cumprimentos, estabelecendo-se assim entre ambos disposições amistosas.
Perguntou-lhe o rei:
― Qual o seu nome, Venerável?
― Chamam-me Nagasena. Mas, ó rei, os pais dão aos filhos um nome: Nagasena, Surasena, Virasena, Sihasena. No entanto, esses nomes nada mais são do que apelativos, expressões comuns sob as quais não existe indivíduo. [1]
― Ouçam todos! Os meus quinhentos escudeiros e os oitenta mil monges! Diz Nagasena que o nome não exprime a existência do indivíduo. Mas, ó venerável, se não há indivíduo, quem lhe dá roupas, alimentos, moradia, remédio? Quem se serve dessas coisas? Quem pratica a virtude? Quem medita? Quem realiza o Caminho, o Fruto, o Nirvana? Quem pratica o assassínio, o roubo, a impureza, a mentira, a embriaguez? Quem comete os cinco pecados? Se for assim, não há bem, nem mal, nem autor, nem idealizador, nem praticante de atos benéficos ou perniciosos. Não há fruto, amadurecimento de ações boas ou más. Se não existe o teu assassino, nesse caso não haverá homicídio. Não há professores, nem preceptores, nem formatura. Quando dizes: “meus confrades me chamam Nagasena”, quem é esse Nagasena a quem te referes? Os cabelos são Nagasena?
― Não, maharajá!
― São os pelos, as unhas, os dentes, a pele, a carne, os tendões? Nagasena são os ossos, a medula, os rins, o coração, o ligado, a epiderme, o baço, os pulmões, os intestinos, o mesentério, os alimentos não digeridos, os resíduos da digestão, a bile, a fleugma, o pus, o sangue, o suor, a gordura, as lágrimas, o óleo da pele, a saliva, o muco nasal, a urina, o cérebro?
― Não, maharajá!
― Ou então há de ser a forma, a sensação, a percepção, a consciência?
― Não, maharajá!
― Então será a reunião dos cinco elementos: forma, sensação, percepção, junção, consciência?
― Não, maharajá!
― É algo distinto dos cinco elementos?
― Não, maharajá!
― Inútil interrogar. Não estou vendo Nagasena. Que é Nagasena? Um vocábulo, nada mais. Tua palavra é falsa e mentirosa! Não existe Nagasena.
― Rei, és delicado como um príncipe. És muito delicado. Se, ao meio dia, fores pisar a terra quente, quando a areia queimar a sola dos pés, e estes se ferirem nos gravetos e pedrinhas do chão, teu corpo cansado, tua alma exausta, tu te sentirás indisposto. Vieste a pé ou de carro?
― Não viajo a pé, venerável. Vim no meu carro.
― Se vieste em teu carro, Maharajá, dá-me a sua definição. O timão é o carro?
― Não, venerável.
― Serão o eixo, as rodas, a caixa, os suportes da cobertura, o jugo, as rédeas, o aguilhão?
― Não, venerável.
― Será o conjunto de todas essas coisas?
― Não, venerável.
― Seria alguma coisa diferente de tudo isso?
― Não, venerável.
― Inútil perguntar ao rei. Não vejo carro. Que é um carro? Um vocábulo, nada mais. Tua palavra, Maharajá, é falsa, mentirosa. Não existe carro. Tu és o primeiro entre os reis do Jambudipa. De quem tens medo para mentires assim? Ouçam todos os quinhentos secretários do monarca e os oitenta mil monges: o rei Milinda afirmou ter vindo de carro até aqui. Convidado a definir o carro, não pôde provar a existência do veículo. Pode-se admitir isso?
Os quinhentos secretários aplaudiram Nagasena e disseram ao rei Milinda:
― Maharajá, responde agora, se puderes.
O rei replicou:
― Não estou mentindo, venerável. É pelo timão que se inicia a designação, a noção comum, a expressão habitual, o nome “carro”.
― Muito bem, Maharajá! Sabes agora o que é o carro. Assim também é pelos cabelos e pelas outras partes do corpo humano que se inicia o apelativo, a noção comum, a expressão corrente, o nome Nagasena. Mas, na realidade, não há indivíduo. A religiosa Vajira disse na presença do Buda:
“Assim como a combinação das peças dá lugar à palavra carro, assim também a existência dos skandas dá lugar ao convencional ser vivo”. [2]
― Maravilhoso, Nagasena! Respondeu a todos os pontos da minha pergunta. Se o Buda estivesse aqui, ele te aplaudiria. Muito bem, muito bem, Nagasena!
Capítulo 2
O Número
― Quantos anos tens de vida religiosa, Nagasena?
― Sete.
― Que é sete? Tu és sete ou o número é sete?
Nesse momento, estendia-se pelo chão e sobre uma jarra de água a sombra do rei com os seus ornamentos. Perguntou-lhe então Nagasena:
― Eis a tua sombra, Maharajá, sobre o chão e sobre a jarra de água. Quem é o rei? Tu ou a tua sombra?
― O rei sou eu e não a minha sombra, que se projeta por minha causa.
― Assim também, Maharajá, sete é o número dos anos, não eu de quem se origina o sete, assim como a sombra vem de ti.
― Maravilhoso, Nagasena! Admirável, Nagasena!
Capítulo 3
Diversas Maneiras de Discussão
― Queres discutir comigo, Venerável?
― Sim, se discutires À maneira dos sábios. Não, se discutires como os reis.
― Como discutem os sábios?
― Quando em uma discussão nós somos enlaçados, nós nos soltamos do laço. Nós aplicamos uma critica e recebemos outra. Ora estamos perdendo, ora estamos ganhando. Os sábios não se irritam. É assim que eles discutem.
― E como discutem os reis?
― Os reis expressam uma opinião. Se alguém contesta, eles mandam aplicar-lhe algumas pauladas. É assim que os reis discutem.
― Então vou discutir como os sábios e não como os reis. Sua Reverência pode discutir comigo livremente, como faria com um outro religioso, um noviço, um fiel , ou serviçal do convento. Não tenha nenhum receio.
― Está bem, maharajá.
Capítulo 4
Escaramuça
― Venerável Nagasena, eu te interrogarei.
― Interroga, Maharajá.
― Já te interroguei.
― E eu já te respondi.
― Que me respondeste?
― Que me interrogaste?
Capítulo 5
Preparativos da Entrevista
O rei Milinda pensou consigo: “Este religioso é sábio e capaz de discutir comigo. Vou interrogá-lo sobre muitas questões e o sol se deitará antes de terminar. Seria melhor discutirmos em palácio.”
Recomendou a Devamantyia: “Avise a Sua Reverência que a discussão se realizará em meu palácio.”
O rei Milinda levantou-se, despediu-se e montando o cavalo afastou-se, repetindo o nome de Nagasena, como se esse nome fosse unia lição para ser decorada.
No dia seguinte pela manhã, Devamantyia, Anantakaya, Mankura, Sabbadina, apresentaram-se ao rei e perguntaram-lhe:
― Majestade, o venerável Nagasena pode vir?
― Sim, pode.
― Em companhia de quantos religiosos?
― Quantos quiser.
Observou Sabbadina:
― Ele pode trazer dez.
Repetiu o rei:
― Venha com quantos quiser.
Sabbadina repetiu a informação e o rei disse:
― Tudo já foi arranjado. Ele venha com quantos quiser. Eu já o disse, mas Sabbadina parece não estar de acordo. Não podemos oferecer comida a monges?
Sabbadina ficou calado.
Então, Devamantyia, Anantakaya e Mankura foram falar com Nagasena e disseram-lhe:
― O rei convida-o a ir ao palácio em companhia de tantos religiosos quantos Sua Reverência quiser.
Nagasena vestiu-se, tomou a tigela e o manto e acompanhado de oitenta mil religiosos entrou em Sagala.
Anantakaya, que ia ao lado de Nagasena, perguntou-lhe:
― Venerável, quando eu digo “Nagasena” que é Nagasena?
― E que pensas tu que seja?
― O sopro interior, a alma (jiva), que entra e sai. Isso é Nagasena, segundo penso.
― Neste caso, poderia o homem viver, se o sopro interior depois de sair não voltasse a entrar, ou se, depois de entrar, não saísse?
― Não, venerável.
― Mas, naqueles que sopram em búzios, naqueles que sopram em flautas, o sopro volta aos pulmões?
― Não, venerável.
― Então, por que não morrem?
― Não posso discutir com um lógico, tal como Nagasena. Mas diz-me, venerável, nesse caso o que ocorre?
― No caso, não é alma, e sim trata-se de propriedades do corpo, chamadas expiração e inspiração.
E o monge então discorreu sobre o Abhidhamma e Anantakaya declarou-se fiel leigo.
Capítulo 6
Finalidade da Vida Religiosa
No palácio real, Nagasena sentou-se no lugar que lhe foi designado.
O rei, pessoalmente, serviu ao monge e aos seus companheiros um excelente almoço, dando também a cada um duas vestes e a Nagasena ofereceu três.
Depois disse a esse monge:
― Venerável, dez religiosos podem ficar conosco. Os outros têm liberdade para se retirarem.
Quando Nagasena veio sentar-se ao lado do monarca, perguntou-lhe o rei:
― Venerável, de que iremos falar?
― Estamos buscando um objetivo.
― Está bem. Então, qual a finalidade do seu afastamento do mundo? Para o reverendo, qual o seu último objetivo?
― A extinção da dor presente, sem surgir nenhuma outra. Nosso objetivo último: o Nirvana absoluto.
― E todos que se retiram do mundo têm esse objetivo?
― Não. Alguns buscam o Nirvana. Outros temem o rei ou os assaltantes. Outros não desejam pagar suas dívidas. Enfim, alguns se afastam do mundo induzidos por um pensamento correto, enquanto outros o fazem para terem um meio de vida.
― E tu, venerável, saíste do mundo para alcançar o Nirvana?
― Eu era ainda um menino, sem a plena consciência do meu objetivo, quando dizia comigo mesmo: “Os ascetas budistas são sábios. Eles me instruirão.” Agora, tendo recebido a necessária instrução, vejo qual o objetivo do afastamento do mundo.
― És hábil, Nagasena.
Capítulo 7
Causa dos Renascimentos
― Nagasena, é possível um homem morrer e não renascer?
― Um renasce, outro não. Renasce quem está cheio de paixões. Quem está livre delas não renasce.
― E tu, venerável, vais renascer?
― Se não me livrar do apego, renascerei. Se vencer o apego, não renascerei.
Capítulo 8
Meios de Libertação
― É pela atenção concentrada que nos livramos do renascimento?
― Pela atenção concentrada, pela sabedoria, por outros estados de alma salutares.
― Mas a atenção concentrada não é a mesma coisa que a sabedoria?
― Não! São diferentes. A atenção concentrada acha-se nas cabras, nos carneiros, nos bois, nos búfalos, nos camelos, nos burros. Jamais a sabedoria.
Capítulo 9
A Atenção Concentrada e a Sabedoria
― Qual é a característica da atenção concentrada e a da sabedoria?
― Uma define-se pela reunião. Outra pela cisão.
― Como é isso? Dá um exemplo.
― Já tens visto os ceifadores, Maharajá?
― Sim.
― Como eles ceifam a cevada?
― Com a mão esquerda agarram um feixe de talos e com a foice na mão direita cortam o feixe.
― Maharajá, mediante a atenção concentrada, o asceta reúne os processos da inteligência e mediante a sabedoria, ele corta as paixões. Por isso, uma é figurada pela reunião e a outra pela cisão.
Capítulo 10
A Virtude
― Falaste, Nagasena, em “outros estados de alma salutares”. Quais são?
― A virtude, a fé, a energia, a reflexão, o recolhimento.
― Qual é a característica da virtude?
― A virtude define-se como base. Ela é a base de todos os estados de alma salutares: faculdades, forças, elementos da intuição suprema, meditações, esforços, condições do poder mágico, êxtases, emancipações, recolhimentos, conquistas espirituais. Baseados na virtude, não se extinguem os estados de alma salutares.
― Dá uma comparação.
― Assim como todas as espécies de plantas nascem, crescem e desenvolvem-se, apoiando-se no solo, assim é com apoio na virtude que o asceta desenvolve as cinco faculdades: fé, energia, reflexão, recolhimento, sabedoria.
― Dá outra comparação.
― Assim como todos os trabalhos que exigem força física executam-se com apoio no solo, assim é com apoio na virtude que o asceta cultiva as cinco faculdades.
― Outra comparação.
― Para construir uma cidade, o arquiteto começa por limpar o terreno. Arranca os tocos de árvores, o capim, aplaina o chão, depois desenha o traçado das ruas e praças. Assim também, apoiando-se na virtude, o asceta cultiva as cinco faculdades.
― Dá-me ainda outra comparação.
― O acrobata manda limpar o chão, antes de exibir-se ao público, a fim de executar os seus saltos sobre um terreno macio. Assim também procede o asceta para o cultivo das cinco faculdades.
O Bem-aventurado [3] disse, ó rei: “Apoiando-se na virtude, cultivando o pensamento e a sabedoria, o sábio, o monge fervoroso e prudente pode extirpar a erva daninha da existência. Assim como a terra é a base dos seres vivos, esse é o fundamento de todo progresso no bem. Este é o ponto de partida de todo o ensinamento do Buda. Este é o Código das regras do excelente Patimokka.” [4]
Capítulo 11
A Fé
― Venerável, qual é a característica da fé?
― A purificação e o impulso.
― De que modo a purificação é característica da fé?
― A fé elimina os obstáculos, quando se eleva. Quando se afastam os obstáculos, o espírito torna-se límpido e puro. Assim a purificação é característica da fé.
― Dá-me outra comparação.
― Imagina um grande rei com todo o seu exército em marcha. Os elefantes, os cavalos, os carros agitam a água do ribeiro que atravessam, que fica misturada com areia e barro. Depois da passagem do exército, o rei pede que lhe tragam água para beber. Supõe, Maharajá, que os servidores reais atirem na água uma pedra que serve para limpar água. Que acontece? Afastam-se as pedrinhas, as ervas aquáticas, a lama deposita-se no fundo do leito do ribeiro. Então a água torna-se límpida, pura, e os serviçais do rei podem levá-la ao monarca. Ora, a água é o espírito, os serviçais são os monges, e as pedrinhas as ervas, a lama são as paixões. A pedra que purifica o espírito é a fé. Esta elimina os obstáculos e o espírito torna-se límpido e puro. É assim que a purificação é característica da fé.
― E o impulso?
― Vendo outros espíritos libertos, o asceta avança para conquistar o estado de quem entrou no caminho (sopanna); tem apenas mais uma existência terrestre a atravessar (sakadagami); ou não vai mais voltar à terra (anagami); ou ao falecer deve entrar no nirvana absoluto (arhat). O sábio então avança para realizar aquilo que outras realizaram.
― Dá outra comparação.
― Uma grande chuva cai no alto de um monte. A água escorre pelos flancos do monte e depois de encher buracos, valas, bueiros, ela segue por um ribeiro e vai fazer um rio transbordar. Aproxima-se muita gente que deseja atravessar o rio, mas não sabe se ele está muito fundo ou raso e permanece indecisa em uma das margens. Aparece então um homem que consciente da sua força e do seu poder, pula na água para atravessar o rio. Toda aquela gente imita aquele homem e imitando-o entra no leito do rio e nada até chegar à outra margem.
Assim procede o asceta. Vendo outros espíritos se libertarem, ele se esforça por vencer os sucessivos degraus da santidade. Por isso, a fé caracteriza-se pelo impulso.
Diz o Bem-aventurado no Samyuttanikaya: [5] “Pela fé, ele atravessa a corrente; pela fé, ele atravessa o oceano; pela energia, ele vai além do sofrimento; pela sabedoria, ele é purificado.”
Capítulo 12
A Energia
― Nagasena, qual é a característica da energia?
― O apoio. Apoiados nela, os estados de alma salutares não se abatem.
― Dá-me uma comparação.
Se se apoia uma parede, quase caindo, em uma forte escora de madeira, a parede não vai ao chão. Assim, a energia caracteriza-se pelo seu apoio. Sustentados por ela, não se abatem os estados de alma salutares.
― Outra comparação, ainda.
― Quando um pequeno exército é obrigado a recuar, diante de um grande exército, se o rei enviar tropas de apoio, o exército inimigo recuará. Portanto, a característica da energia é o apoio. Ensinou o Bem-aventurado: “Religiosos! O discípulo enérgico elimina o que é pernicioso, desenvolve o que é salutar, elimina o que é censurável, desenvolve o que é irrepreensível e mantém-se puro”.
Capítulo 13
A Reflexão
― Nagasena, qual é a característica da reflexão?
― A enumeração e a admissão.
― A enumeração? Como?
― A reflexão enumera os estados de alma: salutares ou perniciosos; censuráveis ou irrepreensíveis; vis ou excelentes; negros ou brancos; todos com as suas subdivisões.
Mediante a reflexão, descobrem-se as quatro meditações, [6] os quatro esforços, [7] as quatro bases do poder mágico, [8] as cinco faculdades, [9] os sete elementos de Budhi, [10] o nobre caminho de oito pistas, [11] a tranquilidade, a clarividência, a ciência, a libertação. Em consequência desse exame, o asceta procura os estados de alma que se deve procurar, evita aqueles que importa evitar, pratica os outros que têm de ser praticados, refeita aqueles que devem ser rejeitados. Assim a reflexão tem como característica a enumeração.
― Dá uma comparação.
― O tesoureiro de um monarca, todos os dias, lembra ao rei a sua riqueza, dizendo-lhe: “Sua Majestade possui tantos elefantes, tantos cavalos, tantos carros, tantos infantes, tais e tais bens... Não esqueça, Majestade!” Assim, a reflexão enumera os estados de alma. A característica da reflexão está portanto na enumeração.
― E a admissão?
― Assim como o ministro de um monarca sabe quais são os seus súditos bons ou ruins, aceitando uns a serviço do rei, rejeitando outros, assim funciona a reflexão.
O Bem-aventurado aconselhou: “A reflexão serve para toda gente”.
Capítulo 14
O Recolhimento
― Nagasena, qual é a característica da concentração? ― A supremacia. Os estados de alma salutares subordinam-se à concentração. Esta é o cume do qual esses estados de alma são as encostas, as ladeiras e o sopé.
― Dá uma comparação.
― Quando um monarca mobiliza o seu exército para a guerra, os elefantes, os cavalos, a infantaria, estão sob seu comando, obedecem às suas ordens. Dá-se o mesmo com a concentração.
Recomendou o Bem-aventurado: “Religiosos, cultivai a concentração. O homem, na concentração, vê a realidade”.
Capítulo 15
A Sabedoria
― Nagasena, quais são as características da sabedoria?
― A cisão, à qual já me referi, e a iluminação.
― Como?
― A sabedoria dissipa as trevas da ignorância, produz a clareza da ciência, faz brilhar a luz do conhecimento, revela as santas verdades. Por ela o asceta adquire o perfeito entendimento da impermanência, da dor e da impersonalidade.
― Dá uma comparação.
― Se entrarmos em uma casa com uma luz acesa, a luz dissipando as trevas produz a claridade no interior da casa, de forma que se mostram as coisas que estão lá. Assim procede a sabedoria.
Capítulo 16
Estados da Alma
― Nagasena, esses estados de alma diversos produzem um mesmo resultado? Sim, todos têm por objetivo destruir as paixões.
― Como assim? Dá um exemplo.
― Assim como os diversos elementos de um exército concorrem para um só resultado, a derrota do inimigo, do mesmo modo os diferentes estados de alma têm um único objetivo: a destruição das paixões.
Capítulo 17
A Cadeia dos Renascimentos
― Nagasena, quem renasce? A mesma pessoa ou outra?
― Nem a mesma pessoa, nem outra. Dá-me uma comparação.
― Quando criança frágil, eras como hoje, que estás grande?
― Não, Venerável. Eu era outra pessoa.
― Sendo assim, não tens nem pai, nem mãe, nem preceptor. Não pudeste aprender as artes, adquirir virtudes, sabedoria! Haverá pois uma mãe para cada fase do embrião, uma mãe para a criança, outra para o homem feito. Quem se instrui é uma pessoa, quem se instrui é outra. Um é o autor do crime, outro o indivíduo a quem se cortam as mãos e os pés.
― De modo nenhum, Venerável. E tu que dizes?
― Já fui criança e agora sou homem, eu mesmo.
O ser humano, em suas diversas fases, tem sua unidade no corpo. [12]
― Dá uma comparação.
― Quando se acende um facho, este pode queimar a noite inteira?
― De certo.
― E a chama da última noite é a mesma da segunda, esta a mesma da primeira?
― Não.
― Há então um facho diferente em cada noite?
― Não, o mesmo facho queimou a noite inteira.
― Assim, Maharajá, o encadeamento dos Kharmas é contínuo. Um surge, quando o outro desaparece. De algum modo, não há nem antecedente, nem consequente. Portanto, não é o mesmo, nem o outro, que acusa o último ato de consciência.
― Dá outro exemplo.
― Quando o leite transforma-se em coalhada, manteiga fresca, depois manteiga refinada, pode-se dizer que o leite fresco é o mesmo que a manteiga ou a manteiga refinada?
― Não, mas todos procedem do mesmo leite.
Capítulo 18
O Arhat não Renascerá
― Nagasena, aquele que não vai renascer sabe que não renascerá mais?
― Sim.
― Como sabe?
― Pelo desaparecimento da causa, da condição do renascimento. [13]
― Dá uma comparação.
― Supõe o lavrador que semeou e encheu o seu celeiro. Depois, come o cereal, vende-o, ou dispõe dele, segundo suas conveniências.
― Esse lavrador sabe que o celeiro não se encherá outra vez?
― Sabe.
― Como?
― Pelo desaparecimento da causa, daquilo de que ocasionava encher-se o celeiro. Assim, quem não tem de renascer sabe que não renascerá, pois desapareceu a causa, a ocasião do seu renascimento.
Capítulo 19
A Inteligência, a Sabedoria e o Erro
― Nagasena, quem possui inteligência, possui a sabedoria?
― Sim, Maharajá.
― Então, neste caso, a inteligência é a mesma coisa que a sabedoria.
― Sim.
― Quem possui inteligência e sabedoria, pode errar?
― Pode errar em alguns pontos, em outros não.
― Em quais pontos pode errar?
― Nas ciências que não estudou, na descrição de uma região onde nunca viajou, sobre o significado de um termo que nunca ouviu.
― Em quais pontos não pode errar?
― Sobre as verdades, que são o fruto da sabedoria: a impermanência, a dor, a impessoalidade.
― E o seu erro, como findará?
― Quando a inteligência aparece, dissipa-se o erro.
― Um exemplo.
― O facho de luz em uma casa escura desfaz as trevas, espalhando claridade. Assim, quando a inteligência aparece, dissipa-se o erro.
― E a sabedoria, que será?
― Tendo exercido sua função, a sabedoria desaparece imediatamente. Mas aquilo que ela suscitou, o conhecimento da impermanência, da dor, da impessoalidade, isso não desaparece. [14]
― Uma comparação.
― Supõe que alguém, à noite, queira escrever a outra pessoa. Manda chamar o escriba e pede uma lâmpada. Faz o ditado da carta e terminando-o, apaga a lâmpada.
― Outro exemplo.
― Nas regiões orientais, os camponeses colocam, ao lado de cada casa, potes cheios de água para se apagar algum incêndio que ocorrer. Quando uma casa é incendiada, derramam-se os potes sobre ela e o fogo extingue-se. Depois disso, pretenderão os camponeses fazer uso dos potes?
― De certo que não. Para que vão servir os potes?
― Semelhantes aos cinco potes, são as cinco faculdades: fé, energia, reflexão, concentração, sabedoria. O campônio é como o asceta. Semelhantes ao fogo são as paixões. Assim como o fogo é extinto pelos cinco potes de água, assim as paixões são abafadas pela sabedoria. Uma vez extintas, as paixões não renascem.
― Outra comparação.
― Supõe o médico que, depois de pilar juntas cinco raízes de plantas medicinais, dá o suco ao seu doente, que se cura. Pensa o médico em aplicar-lhe outra vez o remédio?
― De certo que não. Para quê?
― Semelhantes às cinco raízes medicinais são as cinco faculdades. [15] Semelhante ao médico é o asceta. Semelhantes às doenças são as paixões. Semelhante ao doente é o infiel. Assim como os humores pecaminosos são expulsos pelas cinco drogas e o doente está curado, assim as paixões são expulsas pelas cinco faculdades. Uma vez expulsas, elas não renascem. Depois de exercer a sua função, a sabedoria desaparece. Mas subsistem os conhecimentos oriundos da sabedoria.
― Dá-me ainda outra comparação.
― Supõe um combatente, um guerreiro que dispõe de cinco flechas para vencer o inimigo. Disparadas as cinco flechas, vê derrotado o exército adversário. Será que pretende continuar disparando flechas?
― Decerto que não.
― Semelhante às cinco flechas são as cinco faculdades. Semelhante ao guerreiro é o asceta. Semelhantes ao exército inimigo são as paixões. Assim como o exército adversário foi derrotado pelas cinco flechas, assim se rompem as paixões pelas cinco faculdades. Uma vez rompidas, as paixões não renascem. Depois de desempenhar sua função, a sabedoria também desaparece. Mas permanecem os conhecimentos que ela produz.
Capítulo 20
Sensações do Arhat
― Nagasena, aquele que não vai renascer está sujeito às sensações dolorosas?
― Algumas. Outras, não.
― Quais?
― Pode ter sofrimentos físicos. Mentais, não.
― Por quê?
― Não desapareceu a causa, a ocasião dos sofrimentos físicos não desapareceu, mas extinguiu-se a causa dos sofrimentos morais.
O Bem-aventurado disse: “Ele só pode ter uma espécie de sensação, a física, não a sensação moral.”
― Se ele sofre, por que não realiza logo a sua extinção pela morte?
― Maharajá, o Arhat está livre de apego e de aversão. Os santos não querem o fruto verde, colhem-no quando está maduro.
Escreveu Sariputa, Marechal da Lei:
“Não desejo a morte. Não desejo a vida. Aguardo minha hora, como o servidor espera o seu salário.”
Capítulo 21
Diversidade das Sensações
― Nagasena, a sensação agradável é salutar, perniciosa ou neutra?
― Pode ser uma ou outra.
― Mas se a sensação salutar não é dolorosa, se a sensação dolorosa não é salutar, será impossível a associação “salutar” e “dolorosa” como “perniciosa” e “agradável”.
― Está vendo esse serviçal, Maharajá? Supõe que colocam uma bola de ferro quente em uma das mãos e na outra uma bola gelada. As duas bolas vão queimá-lo?
― Sim.
― São ambas quentes ou ambas geladas?
― Não.
― Vê a debilidade do teu raciocínio. Se é o quente que queima, como as duas bolas não são quentes, é impossível que ambas queimem. Se é o frio que queima, as duas bolas, não sendo frias, dá-se a mesma impossibilidade.
― Não posso contestar. Diz-me então o que ocorre.
Então o monge citou uni trecho do Abhidhamma.
“Há seis prazeres na vida de família, seis prazeres na vida de asceta. Seis desprazeres na vida de família. Seis desprazeres na vida do asceta. Seis estados de indiferença na vida de família, seis desses estados na vida dos ascetas.
Na vida de família, há seis prazeres, seis desprazeres, seis estados de indiferença. Na vida do asceta, há seis prazeres, seis desprazeres, seis estados de indiferença. São, portanto, trinta e seis espécies de sensações, que podem ser passadas, presentes ou futuras”.
Capítulo 22
Renascimento do Nomeforma
― Nagasena, que é que renasce?
― O Nomeforma.
― É o Nomeforma presente que renasce?
― Não. O presente Nomeforma comete uma ação boa ou má. Como conseqüência dessa ação, nasce outro Nomeforma.
― Se não é o mesmo Nomeforma que renasce, não estará isento de pecados anteriores o novo Nomeforma?
― De fato seria assim, se não houvesse renascimento. Mas há renascimento e, portanto, não é isso que acontece.
― Exemplo.
― Supõe que alguém rouba mangas que pertencem a outro homem. O dono das mangas agarra o ladrão e leva-o ao rei, acusando-o de roubo. Defende-se o acusado, alegando: “As mangas que eu colhi não pertencem a este homem. As suas mangas nasceram de outras mangueiras. Não mereço nenhuma punição.” Ele é culpado?
― Sim.
― Por quê?
― Apesar do argumento desse homem, as mangas que ele colheu têm afinidade com as outras.
― Pois bem, Maharajá, quando o Nomeforma executa um ato, bom ou mau, esse ato determina o renascimento de outro Nomeforma. Não se pode afirmar que este se tenha libertado de pecados anteriores.
― Dá-me outro exemplo.
― Supõe que alguém toma de outrem uma quantidade de arroz ou de cana de açúcar. Aplica-se o mesmo raciocínio.
― Mas vejamos este caso. No inverno um indivíduo acende uma fogueira no campo. Aquece-se e depois vai embora, sem extinguir o fogo, que se alastra, queimando a lavoura próxima, pertencente a um camponês vizinho. Este prende-o e leva-o à presença do monarca, afirmando ser tal indivíduo o causador do incêndio da lavoura.
Defende-se o acusado: “Eu não incendiei a lavoura deste homem. O fogo que deixei aceso não foi o mesmo fogo que se alastrou, incendiando a plantação. Não devo ser punido.” Esse homem é culpado?
― É.
― Por quê?
― Apesar do seu argumento, o último fogo relacionava-se com o anterior.
― Dá-se o mesmo com o Nomeforma.
― Outra comparação.
― Indo jantar no sótão da sua casa, um homem leva para lá um archote aceso. Incendeia-se o teto da casa e de lá o fogo alastra-se às outras casas da aldeia. Os aldeões prendem-no, acusando-o da autoria do incêndio. Perguntam-lhe: “Por que incendiaste a aldeia?” Responde-lhes o homem: “Eu não incendiei a aldeia. O fogo que levei para o sótão foi um e o que se alastrou pela aldeia foi outro”. Se aqueles homens comparecessem à tua presença, Maharajá, a quem darias razão?
― Aos aldeões.
― Por quê?
― O fogo que incendiou a aldeia saiu do fogo do archote que o homem levou para o sótão da sua casa.
― Dá-se o mesmo com o Nomeforma.
― Sem dúvida é outrem o renascido, mas nem por isso deixa de proceder de alguém que morreu. Portanto, não se pode dizer que esteja libertado de pecados anteriores.
― Dá-me outra comparação.
― Um indivíduo casa com uma menina, paga o dote e vai embora. A menina cresce e, estando já púbere, contrata casamento com outro homem. Este paga o dote e festeja o seu casamento com ela.
Vem então o primeiro indivíduo protestar contra o esbulho. Defende-se o segundo marido: “Não me casei com tua mulher. A menina de quem ficaste noivo, pagando o dote, era uma pessoa e esta com quem me casei é outra.”
Discutindo sempre, dirigiram-se afinal à tua presença. Como resolverias a questão?
― Eu daria razão ao primeiro.
― Por quê?
― Porque a moça procede da menina.
― Dá-se o mesmo com o Nomeforma.
Capítulo 23
Repreensão
― Nagasena, tu mesmo renascerás?
― Por que repetes esta pergunta? Já não te respondi? “Se eu for apegado, renascerei. Se livrar-me do apego, não renascerei”.
― Dá-me um exemplo.
― Supõe que alguém prestou um serviço ao rei, que, para recompensá-lo, nomeia-o a um cargo, que lhe permite gozar uma vida de prazeres. Se esse homem se queixasse da ingratidão do rei, procederia corretamente?
― Não, venerável.
― Então, Maharajá, por que procedes deste modo comigo, fazendo-me uma pergunta à qual já respondi?
Capítulo 24
O Nome e a Forma [16]
― Nagasena, falaste de Nome e Forma. Que é Nome?
― A Forma é material. As ideias e as sensações constituem o Nome.
― Por que o Nome ou a Forma não podem renascer isoladamente?
― Renascem sempre juntos porque se apoiam um no outro.
― Exemplo.
― A galinha. Se não houvesse um germe dentro da galinha, não se formada o ovo. Germe e ovo estão condicionados, um pelo outro, e o seu nascimento é simultâneo. Destarte, se não houvesse Nome não haveria Forma. Nome e Forma estão condicionados, um pelo outro. O seu nascimento é simultâneo. E assim eles se produzem por um indefinido período temporal.
Capítulo 25
Que é Duração? [17]
― Nagasena, falas de uma duração indefinida. Que é período? Que é duração?
― O período passado, o presente, e o futuro.
― Mas existe duração?
― Devemos distinguir o que existe e o que não existe. As estruturas passadas, desaparecidas, desfeitas, transformadas, pertencem já à duração inexistente. Aqueles que podem produzir um efeito ou têm a possibilidade de produzi-lo, pertencem à duração existente. Os seres que morrendo vão renascer além, quando morrem estão na duração inexistente. Os seres que entram no Parinirvana acham-se na duração inexistente, pois estão completamente extintos.
Capítulo 26
Origem
― Nagasena, qual é a raiz da duração passada, da futura, da presente?
― A ignorância. [18] Da ignorância derivam, sucessivamente, as estruturas, a consciência, o Nomeforma, os seis sentidos, o contato, a sensação, a sede, o apego, a existência, o nascimento, a velhice, a morte, a tristeza, o luto, o sofrimento, o descontentamento, o desespero. Mas a origem dessa duração é incognoscível.
― Dizes que a origem da duração é incognoscível. Dá uma comparação.
― Deposita-se a semente na terra. Sai um germe que medra, cresce, desenvolve-se e dá um fruto. Uma semente desse fruto, depositada na terra, também se desenvolve e dá um fruto. Isso tem fim?
― Não.
― Do mesmo modo, a origem da duração é incognoscível.
― Dá-me outro exemplo.
― Da galinha sai o ovo, do ovo nasce a galinha.
― Podes apresentar outro exemplo?
Nagasena traçou um círculo no chão e perguntou ao rei:
― O círculo tem fim?
― Não.
― Ocorre o mesmo com as estruturas. A órbita ocular e as sensações óticas produzem a percepção visual. Da junção dessas três condições, advém o contato, do contato saem as sensações, das sensações a sede, da sede a ação, da ação provém outra vez a órbita ocular.
Capítulo 27
Ponto de Partida
― Nagasena, agora falaste de origem. Que entendes por “origem”?
― Refiro-me à origem da duração que passou.
― Tu te referes a toda e qualquer origem?
― Não. Há uma cognoscível e outra incognoscível.
― Qual?
― Pode-se dizer que a origem é incognoscível, quando, antes de um dado momento, havia ignorância somente. Mas se nasce uma criatura, que não existia ainda, ou se desaparece, depois de ter existido, então há origem cognoscível.
― Disseste, Nagasena, que o inexistente nasce e que depois de ter existido desaparece. Assim limitado, não pode deixar de extinguir-se.
― Mas o que está cortado nas duas pontas não pode aumentar?
― Sem dúvida. Mas não é esse o sentido da minha pergunta. Quero saber: pode aumentar pelas pontas?
― Sim. Pode.
― Dá um exemplo.
O monge deu o exemplo da árvore, dizendo que os skandas são os germes do sofrimento.
Capítulo 28
Nascimento das Estruturas
― Nagasena, há estruturas que nascem?
― Há.
― Quais?
― Havendo olho e formas, produz-se a faculdade da percepção visual. Desta decorrem, em série, o contato visual, a sensação, a sede, o apego, a existência, o, nascimento, a velhice, a morte, o sofrimento. Eis a origem de todo sofrimento.
Capítulo 29
Origem das Estruturas
― Nagasena, há estruturas que nascem do nada?
― Não. Quando nascem, as estruturas têm já certa existência.
― Dá uma comparação.
― Esta casa onde está saiu do nada?
― Não. Aqui nada se acha que não tenha já existido. A madeira estava na floresta, a argila no solo. A casa resultou do esforço de homens e de mulheres que trabalharam com esses materiais. Assim, não há estruturas nascidas do nada.
― Dá outra comparação.
― As sementes no solo germinam, crescem, tornam-se árvores, que dão flores e frutos. Essas árvores não saíram do nada. Já existiam, sob a forma de sementes. Dá-se o mesmo com as estruturas.
― Dá-me outro exemplo.
― O oleiro extrai do solo a argila com que fabrica potes. Esses potes não saem do nada. Existiam antes como argila. Dá-se o mesmo com as estruturas.
― Dá-me outra comparação.
― Se não houvesse em uma vina [19] nem cavalete, nem armação, nem chavetas, nem pescoço, nem corda, nem arco, nem esforço humano, como nasceria o som? Se não houvesse nem arani, [20] nem correia, nem amadou, nasceria o fogo? Não! Se não houvesse lente, calor do sol, excremento seco de vaca, nasceria o fogo? Não! Portanto não há estruturas nascidas do nada. Se não houvesse espelho, luz, rosto, nasceria a imagem refletida?
Capítulo 30
A Alma não Existe
― Nagasena, existe o Vedagu?
― Que chamas Vedagu, Maharajá?
― A alma que está dentro de nós vê a forma com o olho, ouve o som com o ouvido, aspira o perfume com o nariz, prova o sabor com a língua, encosta-se nos objetos tangíveis com o corpo, conhece os fenômenos com o sentido interno, tal como nós, sentados dentro deste palácio, podemos ver o que nos agrada, olhando pela janela ou pela porta.
― Não falaste das cinco portas, Maharajá. Ouve. Dá-me atenção. Se a alma interna vê a forma pelos olhos, como podemos nós, sentados no interior deste palácio, ver as formas por uma das quatro janelas que escolheram? O resultado disso seria vermos uma forma pela orelha, pelo nariz, língua, pelo corpo, pelo sentido interno.
― Não, Venerável.
― Tuas afirmativas não concordam. Mais ainda: se as janelas desta sala não tivessem cortinas, poderíamos ver melhor as formas que estão lá fora. Se os olhos fossem arrancados, essa alma interna enxergaria mais facilmente as formas, no espaço ambiente? Se fossem obstruídos os ouvidos, cortados o nariz, a língua, o corpo, seria possível ouvirem-se sons, aspirarem-se perfumes, saborearem-se manjares, tocarem-se objetos?
― Não, Venerável.
― Tuas afirmativas não concordam. Se Dina, aqui presente, saísse desta sala, ficasse sob o pórtico da entrada, saberias que ele saiu e está sob o pórtico?
― Sim, Venerável.
― E se ele voltasse e ficasse à tua frente, saberias disso?
― Sim, Venerável.
― E ainda com essa alma, se colocássemos na língua uma substância qualquer, essa alma interna saberia que tal substância é azeda, salgada, amarga, ácida, doce?
― Sim, Venerável.
― E se esse gosto fosse até os intestinos, a alma interna saberia disso?
― Não, Venerável.
― Tuas afirmativas discordam. Mais ainda: suponhamos que se derramem em um tonel cem jarras de vinho de frutos de palmeira. Se mergulharmos nesse tonel um homem amordaçado, saberá ele que o vinho é doce ou não?
― Não! Não saberá!
― Por quê?
― Porque o vinho não entraria em sua boca.
― Tuas afirmativas não concordam.
― Não posso discutir com um dialético hábil como tu. Diz-me qual o teu fundamento nesta discussão.
O monge expôs-lhe então um resumo do Abhidhamma. Como consequência do olho e das formas produz-se a percepção visual. Os estados de consciência que se seguem – tato, sensação, concepção, pensamento, concentração, a atenção, a consciência de sermos uma pessoa viva, tudo isso decorre de algo precedente. No caso, não há Vedagu.
Capítulo 31
Falando de Percepções
― Nagasena, lá onde ocorre a percepção visual, também há a percepção do sentido interno?
― Sim.
― Qual a primeira?
― A visual.
― Então a primeira dá ordem à outra para que ocorra ao mesmo tempo? Ou então a segunda diz à primeira: “Quando ocorreres, eu também ocorrerei”?
― Não, Majestade. Elas não falam uma à outra.
― Como então uma funciona depois da outra?
― Pela tendência, pelo precedente, pela prática.
― Como pela tendência?
― Quando chove, por onde a água escorre?
― Pelo terreno inclinado.
― Se chover outra vez?
― A água escorrerá por onde a anterior escorreu.
― Acaso, a primeira água teria dito à segunda: “onde eu escorro, escorrerás também tu?” Ou: “tu escorrerás por onde eu escorrer?”
― Não, Venerável, elas não falam uma à outra Escorrem, seguindo a inclinação.do terreno.
― Dá-se o mesmo com a percepção visual e com a percepção interna.
― De que maneira se sucedem pela porta essas duas percepções?
― Supõe uma cidade na fronteira, rodeada de muralhas e tendo uma única porta para entrada e saída. Se alguém quiser sair, por onde o fará?
― Pela porta.
― E se alguém mais quiser sair, por onde sairá?
― Pela porta.
― Para a saída de ambos, houve combinação entre os dois?
― Não. Passaram pela mesma porta por ser ela o único lugar por onde podiam sair.
― O mesmo acontece com a percepção visual e a do sentido interno.
― E quanto à antecedência?
― Uma primeira carreta vai por uma estrada. Por onde passará a segunda?
― Pelo mesmo caminho da anterior.
― Houve alguma combinação prévia entre ambas?
― Não. A segunda segue a primeira pela precedência.
― Assim é também com as duas percepções.
― E, quanto à prática, de que modo se sucedem?
― Em ciência, todos começam errando, quando aprendem a calcular, a escrever. Depois, mediante a atenção e a prática, nós nos tornamos hábeis. Assim, pela prática, quando há, percepção visual também ocorre a percepção do sentido interno.
Capítulo 32
Sentido Interno e Sensação
― Nagasena, logo que há percepção do sentido interno, também há sensação?
― Sim, Majestade. Lá onde se produz a percepção do sentido interno, também se produzem o tato, a sensação, a ideia, o pensamento, a reflexão, a análise e todos os estados de consciência, que se sucedem ao tata.
― Qual a característica do tato?
― O contato.
― Exemplo.
― Dois carneiros que dão marradas um no outro, dois pratos metálicos de bombo que batem um no outro. Um dos carneiros, ou um dos pratos é como o olho, o outro a forma. O seu encontro é o contato.
Capítulo 33
Característica da Sensação [21]
― Nagasena, qual é a característica da sensação?
― Sentir e gozar. Dá um exemplo.
― Supõe um indivíduo que tenha prestado um serviço ao rajá, que o recompensa ricamente e lhe possibilita uma existência de prazeres. Esse homem pensa consigo: “prestei um serviço ao rajá. Este, satisfeito, deu-me um emprego. Por isso gozo de tal ou qual sensação”.
Ou então suponha-se um homem que fez uma boa ação. Depois de morrer, vai para o céu, onde vive entre prazeres. Esse homem diz consigo: “'cometi outrora uma boa ação e por isso agora estou gozando desta sensação”.
Capítulo 34
Característica do Renascimento
― Nagasena, qual a característica do reconhecimento?
― O fato de se distinguir. Que é que se distingue? O negro, o amarelo, o vermelho, o branco, o rosa.
― Dá-me uma comparação.
― Ao entrar na sala onde está o tesouro real, o tesoureiro, vendo os objetos pertencentes ao monarca, logo os reconhece, distinguindo a cor desses objetos: negro, amarelo, vermelho, branco, rosa. Assim a característica do reconhecimento é o fato de distinguir.
Capítulo 35
Característica do Pensamento
― Qual a característica do pensamento?
― O fato de pensar e o de preparar o pensamento.
― Exemplo.
― Um homem preparou uma bebida venenosa. Ele e outros beberam-na Por isso ele sofre e os outros também. Do mesmo modo, quem comete uma ação má, depois de morrer vai para o inferno e arrasta para lá os que o imitaram.
Outro homem misturou manteiga refinada, manteiga fresca, azeite, mel, melaço, que bebeu e deu a beber a outras pessoas. Ele e essas outras pessoas sentem prazer. Do mesmo modo, quem praticou uma boa ação vai para o céu, depois de morrer, e leva para lá aqueles que o imitaram.
Capítulo 36
Característica da Consciência
― Nagasena, qual é a característica da consciência?
― A percepção.
― Exemplo.
― O guarda de sentinela em um cruzamento de ruas, no centro da cidade, pode perceber quem está se aproximando pelo oriente, pelo sul, pelo oeste, pelo norte.
Assim, mediante a consciência, o homem percebe a forma que vê com o olho, o som que ouve pelo ouvido, o cheiro que aspira pelo nariz, o sabor na língua, o objeto tangível em que encosta o seu corpo, os estados mentais, que ele apreende com o sentido interno. Destarte, a característica da consciência é a percepção.
Capítulo 37
Característica da Concepção
― Nagasena, qual é a característica da concepção?
― Dá-me um exemplo.
― A adaptação.
― Um carpinteiro adapta uma peça de madeira a um entalhe (em outra peça de madeira). A adaptação é a característica da concepção.
Capítulo 38
Característica do Raciocínio
― Nagasena, qual é a característica do raciocínio?
― A vibração (anumajjana).
― Dá um exemplo.
― Quando se bate em uni gongo, ele emite uma ressonância prolongada. A batida é a concepção (vittaka), a ressonância é o raciocínio (vicara).
Capítulo 39
Individualidade dos
Estados de Consciência
― Nagasena, sendo combinados, será possível dissociarem-se esses estados de consciência e atribuir a cada um sua natureza particular, dizendo, aqui está o tato, a sensação, o reconhecimento, o pensamento, a consciência, a concepção, o raciocínio?
― Não, Majestade. É impossível.
― Dá uma comparação.
― Supõe que o cozinheiro de um rei prepara um suco ou um molho com leite coalhado, sal, gengibre, cominho, pimenta e outros temperos. Pede-lhe o rajá: “dá-me o sabor do leite coalhado, ou do sal, etc.” Estando os temperos já misturados, seria possível separar cada sabor?
― Não, certamente, embora todos estejam presentes com sua característica particular.
― Dá-se o mesmo com os estados de consciência.
Capítulo 40
O Sal
O monge perguntou:
― Pode-se reconhecer o sal com o olho?
― Sim, Venerável.
― Reflete no que estás dizendo.
― Estou enganado. Reconhece-se o sal com a língua.
― Está certo.
― Mas todo sal reconhece-se com a língua?
― Sim.
― Neste caso, corno é que se transporta sal em carro de bois?
― O carro de bois transporta sal que não foi provado por nenhuma língua?
― Não, o carro de bois combina coisas relacionadas com diferentes domínios dos sentidos: sal e peso.
― Pode-se pesar sal em uma balança?
― Sim, Venerável.
― Não. Na balança o que se pesa é o peso.
[1] Não existe indivíduo ‒ Refere-se o monge a um dos postulados básicos da doutrina budista do Hinayana (pequeno veículo), a saber, a inexistência de ego ‒ eu ‒ permanente.
[2] Kanda = Skandha ‒ Grupo de fatores, físicos e psicológicos, cuja reunião contribui para a formação de um ente corporal, vivo, no caso, o ente humano, ao qual os budistas aplicam o termo composto de duas palavras Nama-Rupa.
[3] Bem-aventurado ‒ Um dos espíritos de Buda, não designava exclusivamente Gautama. Na Índia, esse epíteto aplicava-se aos deuses cultuados pelos brâmanes.
[4] Patimokka ‒ Manual em que se relacionam as transgressões às regras monásticas e aos princípios de moral, que os monges devem evitar. Nesse manual também se estabelecem as normas para o funcionamento das reuniões capitulares, que se realizavam duas vezes por mês.
[5] Samyuttanikaya – Livro em que se expõem os diálogos entre Buda e os seus discípulos.
[6] As quatro meditações ‒ a) sobre a impureza do corpo; b) sobre os vícios das sanções; c) sobre o caráter efêmero do pensamento; d) sobre as condições da existência.
[7] Os quatro esforços ‒ a) para prevenir o fruto das más ações; b) para impedir as más ações no presente; c) para suscitar os efeitos futuros das boas ações; d) para conservar e desenvolver as boas ações no futuro. (Vide nota 18).
[8] As quatro bases do poder mágico ‒ Vontade, energia, pensamento, investigação.
[9] As cinco faculdades ou cinco forças ‒ Fé, energia, reflexão, recolhimento, sabedoria.
[10] Os sete elementos de Budhi ‒ Reflexão, investigação, energia, alegria, calma, recolhimento, equanimidade.
[11] O nobre caminho de oito pistas ‒ As pistas são: a) a crença na lei de causalidade; b) o pensamento reto; c) a palavra verídica; d) a ação reta; e) os meios honestos de viver; f) o esforço sincero; g) a verdadeira lembrança e a disciplina interna, h) a verdadeira concentração do pensamento.
[12] A personalidade do indivíduo aos 40 anos é a mesma de quando esse indivíduo tinha 20, apesar das alterações fisiológicas, intelectuais, morais. Assim, personalidades sucessivas, no decurso dos renascimentos têm um mesmo ser, com aparências diferentes, oriundas das novas combinações dos skandas.
[13] Nagasena omitiu a referência à causa mais influente para o renascimento ‒ Tanha, o desejo de viver no mundo físico, inseparável, aliás, da ação dos skandas.
[14] Sabedoria ‒ Para os filósofos gregos pré-socráticos, ‒ entre eles Pitágoras ‒ a sabedoria era o saber de verdades transcendentais, saber de cunho intuitivo, ainda que formulado racionalmente. Segundo Aristóteles, Metafísica, livro I, cap. 1 e 2, a sabedoria é o fundamento da ética.
Do ponto de vista da Teologia cristã, sabedoria é por inspiração o conhecimento das verdades divinas e humanas, sendo também epíteto do Logos ou Verbo divino.
Não parece bem exposta a definição de Nagasena para sabedoria.
[15] Vide nota 35.
[16] Nama-Rupa ‒ Segundo Chrismas Humphreys ‒ Buddhism ‒, a antiga tradução “Nome e forma” é insuficiente para a apreensão do significado da designação “Nama-Rupa”, união estrutural de fatores físicos e psicológicos, que funcionam com um objetivo unitário, a saber a manutenção do ente em que se realizarão os efeitos cármicos de ações praticadas em um tempo já passado, por outro Nama-Rupa. Não há transferência de atos nem continuidade de consciência e sim apenas a atualização do que havia de potencial em ações praticadas em tempo já passado. Os fatores cármicos, apesar de unidos, não se confundem, sendo veiculados pelas forças que atuam no plano da vida universal, manifesta como matéria e como mente.
[17] Duração ‒ Desde os filósofos gregos, distinguiram-se os conceitos de tempo e de duração. Segundo Aristóteles, a duração de uma coisa ou de um fato seria a continuidade dessa coisa ou fato desde o seu início até o seu fim. A duração estaria, portanto, “incluída” no tempo. (De Coelo, I, 9, 279).
Espinosa, entretanto, afastou o conceito de duração do de tempo, considerado como “medida”. Segundo Espinosa, a duração é a “continuação indefinida da existência”. (Ética, II, def. 5).
Leibnitz e Kant permaneceram no plano da noção intelectualista de duração incluída no conceito de tempo. Bergson, revivendo Espinosa e sem dúvida orientando-se pelo pensamento hindu, dá ao conceito de duração um sentido psicológico, interpretando-a como sucessão de estados psíquicos, sem justaposição, mas que se fundem uns nos outros.
Em Ensaios Sobre os Dados Imediatos da Consciência, Bergson fala de uma “duração cujos momentos heterogêneos se interpenetram” e, em “Pensamento e Movimento”: “A duração interior é a vida continua de uma memória que prolonga o passado no presente. Sem a sobrevivência do passado no presente, não haveria duração, mas somente instantaneidade”.
Nagasena, entretanto, apresenta a duração como serie de períodos, fragmentos do processo de criação e destruição de Nomeformas, sem prejuízo do processo de causalidade, de causas que no Passado geram efeitos no Presente. A noção de duração, formulada por Bergson, é de cunho vedantino. A de Nagasena está de acordo com o principio budista de impermanência.
[18] Ignorância, Avidya ‒ Não ciência, não reconhecimento. A ignorância (avidya) é o obstáculo maior à libertação do homem da roda dos renascimentos, a geratriz de todo sofrimento.
Avidya é um dos doze Nidanas ou doze elos da cadeia de causas da existência. Isso por ser ela a ignorância que supõe estarem as criaturas essencialmente separadas uma das outras.
[19] Vina ‒ Instrumento musical semelhante à viola das orquestras no Ocidente.
[20] Arani ‒ Um dos pedaços de madeira que, mediante fricção em outro pedaço; servem para a produção de chispas, que ateiam fogo em porções de palha ou excremento seco de vaca.
[21] Sentido interno, Antakharana ‒ Corresponde ao “sensorium comune” da Escolástica. Aristóteles ensina que o “sensorium” é o órgão interno em que se reúnem as sensações oriundas dos diversos órgãos sensoriais, de modo que o espírito forme uma só representação de um objeto.
Livro III - Solução das Dificuldades
Capítulo 1
Os Órgão e seus Desejos
Disse o rei:
― Nagasena, os cinco órgãos dos sentidos provêm de kamas distintos ou somente de um kama? [1]
De kamas distintos.
― Dá-me uma comparação
― Se semearmos em um mesmo campo cinco espécies de grãos, esses grãos diferentes produzem frutos diferentes?
― Sim.
― Do mesmo modo, os cinco órgãos dos sentidos são produzidos por cinco kamas.
Capítulo 2
Desigualdade dos Homens
― Nagasena, por que todos os homens não são iguais? Por que alguns têm existência longa, outros curta? Por que são diferentes ou iguais? Por que alguns têm existência longa, outros curta? Por que são ou robustos ou doentios, bonitos ou feios, influentes ou insignificantes, ricos ou pobres, nobres ou plebeus, inteligentes ou tolos?
― E por que, Maharajá, todas as plantas são desiguais? Por que, segundo as espécies, são salgadas, amargas, ácidas, doces?
― Devido à diferença nas sementes, suponho.
― Do mesmo modo, os homens diferem pela diferença nas ações. Disse o Bem-aventurado: “Os seres têm seu patrimônio, o seu karma, [2] são herdeiros, descendentes, parentes, vassalos do seu karma. O karma classifica os homens em superiores e inferiores”.
Capítulo 3
Efeitos do Esforço Atual
― Nagasena, dizes que o objetivo cio teu afastamento do mundo é anular o sofrimento atual e impedir que outro venha a nascer. Isso resulta de esforço anterior ou de esforço atual?
― O esforço atual, Majestade, é inoperante, no que diz respeito à existência atual. O esforço no passado, sim, é eficaz.
― Dá-me um exemplo.
― Mandas cavar um poço ou uma cacimba somente ao sentires sede? Mandas lavrar um campo, semear e colher arroz, somente quando sentes fome? Mandas construir muralhas e torres, cavar fossos, armazenar viveres, somente quando a tua cidade for atacada pelo inimigo? Somente então seriam amestrados elefantes, atrelados cavalos aos carros de combate? Somente então irias aprender o manejo do arco e da espada?
― Não, Venerável.
― Também o esforço atual é ineficaz. Só o do passado produz efeito. O Bem-aventurado disse: “O homem deve fazer logo o que lhe for útil. Seja firme na sabedoria e não permaneça ignorante como um carroceiro. O carroceiro sai da estrada real, entra por um atalho pedregoso e fica desesperado, ao quebrar-se o eixo do carro. Do mesmo modo, o tolo deixa o bom caminho para seguir o ruim, cai na boca da morte e desespera-se com o eixo quebrado!”
Capítulo 4
O Fogo do Inferno [3]
― Nagasena, tu dizes: “O fogo do inferno é muito mais ardente do que o fogo natural. Uma pedra atirada no fogo natural pode queimar um dia inteiro, sem consumir-se. Uma pedra do tamanho de uma casa alta, atirada no fogo do inferno, desapareceria no mesmo instante”. Não posso acreditar nisso. Também dizes: “Aqueles que renascem no inferno são queimados lá, durante milhares de anos, sem serem consumidos”. Também não posso acreditar nisso.
― Que pensas, Maharajá? As fêmeas dos crocodilos, das tartarugas, dos pavões, dos pombos, engolem pedras duras e cascalho?
― Sim.
― Esses corpos duros dissolvem-se no ventre desses animais?
― Sim.
― Mas dissolve-se o embrião que eles têm no ventre?
― Não.
― Por quê?
― Penso que por influência do seu karma.
― Do mesmo modo, por influência do seu karma, os moradores do inferno podem ser torturados lá, durante milhares de anos, sem serem consumidos.
O Bem-aventurado disse: “Ninguém morre antes de estar esgotado o seu karma.”
― Dá outra comparação.
As fêmeas dos leões, dos tigres, as panteras, os cães, comem ossos e carnes muito duros. Esses corpos não se dissolvem na barriga desses bichos?
― Sim.
― No entanto, o embrião que está no seu ventre não se dissolve. Por quê?
― Sem dúvida, por influência do karma.
― Dá-se o mesmo com os hóspedes do inferno.
― Dá-me ainda outra comparação.
― As mulheres dos brâmanes, dos burgueses, comem carnes duras, que se dissolvem nas suas barrigas. No entanto, não se dissolve o embrião que elas têm no ventre. Por quê? Pela influência do karma. O mesmo acontece com os hóspedes do inferno.
Capítulo 5
O Ar Sustenta a Água
― Dizes, Nagasena, que a terra é sustentada pela água, a água pelo ar, o ar pelo espaço. Não posso acreditar.
O monge encheu de água um vaso para coar líquidos e disse ao rei:
― Vês que a água está sendo suportada pelo ar.
Capítulo 6
O Nirvana é Cessação
― Nagasena, o Nirvana é cessação?
― Sim, Majestade.
― Como assim?
― Todos os tolos não convertidos sentem prazer apegam-se aos sentidos e aos objetos dos sentidos. Deixam-se levar pela corrente. Não se libertam do nascimento, da velhice, da morte, do sofrimento. Mas o sábio discípulo não sente prazer, não se alegra nem sente satisfação, nem se apega aos objetos dos sentidos. Por aí, sucessivamente, cessam a sede, o apego, a existência, o nascimento, a velhice, a morte, o sofrimento. Assim, o Nirvana é cessação.
Capítulo 7
Quem Atinge o Nirvana?
― Nagasena, toda gente vai ao Nirvana?
― Não, sem dúvida. Mas quem admite os estados mentais que devem ser aceitos, reconhece os que devem ser admitidos, evita os que têm de ser evitados, cultiva os que devem ser cultivados, realiza os que devem ser realizados, esse homem alcança o Nirvana.
Capítulo 8
Conhecimento do Nirvana
― Nagasena, quem não atinge o Nirvana, sabe que o Nirvana é delícia?
― Sim.
― Como pode sabê-lo?
― Aqueles cujas mãos e pés foram cortados sabem qac isso é um sofrimento?
― Sim.
― Como se sabe disso?
― Por se ouvirem as suas queixas.
― Também por se terem ouvido as palavras daqueles que atingiram o Nirvana, sabemos que o Nirvana é uma delícia.
Capítulo 9
Prova da Existência do Buda [4]
― Nagasena, viste o Buda?
― Não.
― Viram-no os teus mestres?
― Não.
― Então Buda não existiu.
― Viste, Maharajá, o rio Uha no Himalaia?
― Não.
― Viu-o teu pai?
― Não.
― Neste caso, o rio Uha não existe.
― Sim, existe, embora nem meu pai, nem eu o tenhamos visto.
― Dá-se o mesmo com Buda.
Capítulo 10
A Superioridade do Buda
― Nagasena, o Buda é superior a todos os seres?
― Sim. Como podes saber, se jamais o viste?
― Sem jamais o termos visto, podemos saber que o mar é grande, profundo, imenso, insondável, pois os cinco rios grandes, o Ganges, o Iamuna, o Aciravati, o Sarabhu, o Mahi, derramam nele suas águas, incessantemente, sem o seu nível subir ou descer?
― Sim.
― Também, considerando os grandes discípulos que estiveram no Parinirvana, sei que Buda é superior a todos.
Capítulo 11
Prova dessa Superioridade
― Nagasena, é possível saber que o Buda é superior a todos?
― Sim.
― Como?
― Houve outrora um mestre em caligrafia, o monge Tissa. Já decorreram muitos anos, desde que ele morreu. De que modo podemos conhecê-lo?
― Por sua caligrafia.
― Assim também, quem vê a Doutrina, vê Buda.
Capítulo 12
O Dharma
― Nagasena, viste o Dharma?
― Maharajá, é a direção dada pelo Buda, são as ordens prescritas pelo Buda, que devem ser a regra para os discípulos, durante toda sua existência.
Capítulo 13
Renascimento sem Transmigração [5]
― Nagasena, é possível renascimento sem transmigração?
― Sim.
― Como? Dá um exemplo.
― Se acendermos um archote, depois outro, podemos dizer que a chama do primeiro transmigrou para o segundo? Não! Do mesmo modo, podemos renascer sem transmigrar.
― Outro exemplo.
― Lembras-te, Maharajá, de teres aprendido um verso dito pelo teu preceptor?
― Sim.
― O verso transmigrou dele para ti?
― Não, sem dúvida.
― Assim, podemos renascer sem transmigrar.
Capítulo 14
Existe a Alma?
― Nagasena, existe o Vedagu?
― Do ponto de vista da verdade absoluta, não!
Capítulo 15
Responsabilidade sem Transmigração
― Nagasena, há um corpo que passa deste corpo a outro?
― Não.
― Então o segundo estará livre de pecados anteriores?
― Se não houvesse renascimento, estaria livre de fato. Mas há renascimento e por isso o segundo não estará livre de pecados.
― Dá uma comparação.
― Se um indivíduo roubar mangas pertencentes a outrem será culpado de furto?
― Certamente.
― No entanto, não roubou as mangas das mangueiras que já tinham sido plantadas.
― Não, mas as segundas mangueiras resultaram de outras anteriores.
Capítulo 16
Resultado dos Atos
Assim, pelo Nomeforma comete-se uma ação boa ou má. Por esse ato bom ou mau, um Nomeforma nasce. Portanto, o segundo não está livre de pecados anteriores.
― Nagasena, as ações boas ou más, praticadas por este Nomeforma, para onde vão?
― Acompanham o seu autor, “inseparáveis como sombras”.
― É possível mostrá-las, dizendo estão aqui, estão ali?
― Não.
― Por quê? Dá um exemplo.
― Podemos mostrar os frutos que uma árvore ainda não produziu, dizendo estão aqui, estão ali?
― Não.
― Do mesmo modo, em uma série ininterrupta de ações, é impossível mostrá-las, aqui ou ali.
Capítulo 17
Pressentimento do Renascimento
― Nagasena, quem está destinado ao renascimento, sabe que vai renascer?
― Sim.
― Como?
― O lavrador que semeia o grão, se houver chuvas regulares, sabe que terá uma colheita?
― Sim.
― Dá-se o mesmo com quem terá de renascer.
Capítulo 18
Onde Está o Buda?
― Nagasena, viste o Buda? [6]
― Sim, Maharajá.
― É possível dizer onde está?
― O Bem-aventurado extinguiu-se no Nirvana absoluto. Não se pode dizer que esteja aqui ou ali.
― Dá uma comparação.
― Se estiver acesa uma grande fogueira e apaga-se uma das suas chamas, podemos dizer que esta se acha aqui ou ali?
― Não, de certo. A chama cessou, desapareceu.
― Do mesmo modo, não se pode dizer que o Bem-aventurado está aqui ou ali. Pode ser localizado pelo Corpo da Lei, pois a Lei foi ensinada por ele.
Capítulo 19
Por que os Monges Cuidam do Corpo?
― Nagasena, os monges gostam do corpo?
― Não.
― Então, por que o tratam bem?
― Alguma vez, Maharajá, foste ferido em uma batalha?
― Sim.
― E a ferida não foi limpa com azeite e envolta em uma atadura?
― Sim.
― E gostaste da ferida para tratá-la assim?
― Não. Fez-se isso para cicatrizá-la.
― Pois também os monges não gostam do corpo. Não sentem apego ao corpo. Tratam-no por ser o instrumento da vida piedosa. O Bem-aventurado comparou o corpo a uma chaga. Os monges tratam dele, sem apego. Disse o Bem-aventurado: “Coberto de uma pele úmida, grande chaga com nove orifícios, dele sai suor impuro e fétido por todos os lados”.
Capítulo 20
Regras Disciplinares
― Nagasena, o Buda sabe de tudo, vê tudo?
― Sim.
― Então por que estabeleceu regras para os pulos, à medida que vinham sendo necessárias?
― Existe algum médico conhecedor de todos médios, na Terra?
― Sim.
― Esse médico dá um remédio ao seu doente, quando há necessidade ou antes da ocasião oportuna?
― Na ocasião oportuna.
― Assim só em tempo oportuno o Bem-aventurado prescreveu regras aos discípulos. Estes não devem desobedecer a essas regras, durante toda sua existência.
Capítulo 21
Porque Buda era Diferente de seus Pais
― Nagasena, o Buda tinha os trinta e dois sinais característicos do Grande Homem, mais os oitenta sinais secundários? Tinha a tez cor de ouro e sua auréola tinha a largura de uma braça?
― Sim.
― E havia os mesmos sinais em seus progenitores?
― Não.
― No entanto, um filho ou se parece com a mãe ou com os pais da mãe, parece-se com o pai ou com os pais do seu pai.
― Conheces, Maharajá, o lótus de cem pétalas?
― Sim.
― Onde nasce?
― No lodo e cresce na água.
― E pelo sabor e cor, como também pelo cheiro, o lótus é parecido com o lodo ou com a água?
― Nem com o lodo, nem com a água.
― Dá-se o mesmo com o Buda.
Capítulo 22
Jogo de Palavras
― Nagasena, o Buda é um brahmacarin?
― Sim.
― Então é discípulo de Brahma.
― Maharajá, possuis um elefante de primeira classe?
― Sim.
― Às vezes, o seu bramido parece um grito de garça real?
― Sim.
― O elefante é discípulo das garças?
― Não.
― Brahma é dotado de inteligência?
― Sim.
― Então é um discípulo de Buda.
Capítulo 23
A Ordenação do Buda
― Nagasena, a ordenação é boa?
― Certamente.
― O Buda recebeu-a?
― O Buda foi ordenado ao alcançar a onisciência ao pé da árvore de Bodi. Não recebeu a ordenação na forma por de prescrita para os discípulos como norma inviolável.
Capítulo 24
Lágrimas Salutares
― Nagasena, dois homens choram, um triste pela morte da mãe, outro por amor à Lei. Qual dos dois tem alivio nas lágrimas?
― As lágrimas do primeiro estão viciadas pela paixão, pelo ódio, pela vaidade. As do outro têm a pureza da alegria, da serenidade. Umas são ardentes, outras são frescas. Aquilo que é fresco é remédio curativo, não aquilo que é ardente.
Capítulo 25
O Passional e o sem Paixão
― Nagasena, qual a diferença entre o homem passional e o outro sem paixão?
― Um é apegado, o outro não sente apego.
― Que é isso?
― Um é cobiçoso, outro não sente ambição.
― É assim que eu entendo o caso: ambos desejam o que é bom, por exemplo, o alimento, não o que é nocivo.
― Maharajá, o homem passional gosta do sabor, tem a paixão do sabor. O homem sem paixão gosta do sabor, mas não sente a paixão do sabor.
Capítulo 26
A Vida da Sabedoria
― Nagasena, onde está a sede da sabedoria?
― Em nenhuma parte.
― Então, não existe.
― Onde está a sede do vento?
― Em parte nenhuma.
― Então, o vento não existe.
Capítulo 27
O Samsara [7]
― Nagasena, falas do samsara. Que é o samsara?
― Uma criatura nasce na Terra e morre também na Terra. Morta aqui, renasce além e morre lá. Isso é o samsara.
― Dá-me uma comparação.
― Um homem planta uma manga e planta o caroço. Desse caroço nasce uma grande mangueira, que produz novas mangas. Vem outro homem, com urna dessas novas mangas e planta o seu caroço, do qual nasce outra mangueira. Não se sabe onde começou a série das mangueiras. Dá-se o mesmo com o samsara.
Capítulo 28
A Memória
― Nagasena, qual o fator da nossa lembrança do que passou, do que aconteceu há muito tempo?
― A memória.
― Não será o pensamento?
― Alguma vez, já esqueceste algo que tivesses feito?
― Sim.
― Estavas então sem pensar?
― Não. O que me faltava era a memória.
― Por que dizes então que nós lembramos pelo pensamento, em vez de pela memória?
Capítulo 29
Memória Espontânea
e Memória Provocada
― Nagasena, a memória produz-se sempre como um ato espontâneo, ato de reconhecimento, ou há uma memória provocada?
― Existem uma e outra.
― Mas uma vez que nós reconhecemos toda lembrança, não há, propriamente falando, memória provocada?
― Se não houvesse memória provocada, os artesãos não poderiam exercer o seu ofício, não se utilizariam de conhecimentos técnicos, os professores seriam inúteis. Tudo isso tem utilidade, graças à memória.
Capítulo 30
Dezesseis Maneiras de Lembrar
― Nagasena, quantas são as maneiras de lembrar?
― Dezesseis:
1 ‒ Reconhecimento espontâneo. É o caso de Ananda, Khujjuttara e outros santos, que se lembram das suas existências anteriores.
2 ‒ Sugestão exterior. É o caso do indivíduo naturalmente esquecido, a quem outras pessoas lembram o que ele deve fazer.
3 ‒ Pela impressão provinda de uma circunstância solene. Por exemplo, um rei lembra-se da cerimônia da sua coroação, ou da sua conversão.
4 ‒ Pela impressão deixada por um fato favorável. Lembra-se alguém de que foi feliz em tal ocasião.
5 ‒ Pela impressão oriunda de um fato funesto. Alguém se lembra de que foi infeliz, em tal situação.
6 ‒ Por uma semelhança. Alguém se lembra do pai, do irmão, da irmã, ao ver alguém que se parece com algum desses seus familiares. Lembra-se alguém de algum outro animal, quando vê um boi, um burro, um camelo.
7 ‒ Por uma dissemelhança. Algo de cor, cheiro ou som diferente, lembra um objeto ou coisa diferente.
8 ‒ Ao ouvir uma palavra. É o caso de quem se lembra de algo ao lhe dizerem uma palavra ou falarem de algo.
9 ‒ Por um sinal. Lembramos deste ou daquele boi ao ver um sinal que ele traz em alguma parte do corpo.
10 ‒ Pela exortação à lembrança. É o caso do homem, naturalmente esquecido, a quem outros estão sempre repetindo: “Lembra-te!” “Lembra-te!”
11 ‒ Pela linguagem escrita. Depois de termos aprendido a escrever, sabemos que tal letra deve ser traçada depois de outra.
12 ‒ Pelo cálculo. Tendo aprendido a calcular, os calculistas podem enumerar um grande número de objetos.
13 ‒ Decorando. Aqueles que aprenderam de cor trechos em prosa ou em versos sabem repeti-los, declamando-os.
14 ‒ Pela meditação. O religioso lembra-se de várias existências anteriores com as suas circunstâncias particulares.
15 ‒ Escrevendo em um livro. Quando têm de proclamar um édito, os monarcas dispõem de um livro, em que transcrevem o texto do édito, para depois se lembrarem do que foi ordenado por essa lei.
16 ‒ Por meio de um depósito. Vendo o objeto depositado, alguém pode lembrar as circunstâncias ou a ocasião em que foi guardado o objeto.
17 ‒ Por associação. Lembramos uma forma que já foi vista, um som que já ouvimos, um perfume que já aspiramos, um gosto que já saboreamos, um objeto em que já tocamos, uma ideia que já nos ocorreu.
Capítulo 31
Pequenos Atos, Grandes Efeitos
― Nagasena, vocês budistas pretendem que o homem que durante a sua existência tivesse sempre cometido ações más se, no momento da morte, dirige um pensamento a Buda, irá viver entre os deuses. Não posso acreditar. Dizem vocês, também, que vamos para o inferno por termos matado um único ser vivo. Também não posso acreditar nisso.
― Responde, Maharajá. Pode uma pedrinha flutuar na água, sem estar apoiada em um pedacinho de madeira?
― Não.
― Mas poderão flutuar cem pedras sobre um estrado de madeira?
― Sim.
― O estrado de madeira são as boas ações.
Capítulo 32
Finalidade da Vida Religiosa
― Nagasena, qual o objetivo do esforço de vocês? A extinção do sofrimento passado, futuro ou presente?
― Nem um, nem outro.
― Então, qual o objetivo de vocês?
― A extinção do sofrimento atual, sem sobrevir nenhum outro.
― E existe sofrimento futuro?
― Não.
― Que sábios extraordinários esses, que se esforçam por suprimir aquilo que não existe!
― Será que mandas cavar trincheiras, construir muralhas, construir torres, fortalezas, somente na ocasião em que te atacam os reis teus inimigos, Maharajá?
― Não. Tudo isso se faz antes.
― Somente quando te atacam teus inimigos, vais aprender a dirigir elefantes, a montar cavalos, a conduzir carros, a manejar o arco e a espada?
― Não. Aprendi tudo isso antes.
― Qual o objetivo?
― Afastar os perigos futuros.
― Mas, existe algum perigo futuro?
― Não, sem dúvida.
― Que sábio extraordinário tu és, preparando-te para afastares perigos que não existem!
― Dá outra comparação.
― Somente quando sentes sede é que mandas abrir um poço ou fazer um tanque, para dispores de água que tu possas beber?
― Não. Tudo isso se faz com antecedência.
― Por quê?
― Para evitar a sede e a fome no futuro.
― Mas, há fome e sede futuras?
― Não, sem dúvida.
― Que sábio extraordinário, que se prepara para evitar sede e fome que não existem!
Capítulo 33
Distância da Terra
ao Inundo de Brahma
― Nagasena, qual a distância daqui ao mundo de Brahma?
― A distância é tal que uma pedra do tamanho de uma casa, vinda do mundo de Brahma com a velocidade de 48.000 yojanas por dia (24 horas) necessitaria de quatro meses para chegar à Terra.
― Vocês também afirmam: “Tão rapidamente quanto um homem robusto estende o braço dobrado ou dobra o braço estendido, o religioso, que realizou o domínio da mente, desaparece do Jambudipa e reaparece no mundo de Brahma”. Não posso acreditar que ele percorra com tal rapidez esse número de yojanas. [8]
― Qual é o teu país natal, maharajá?
― Uma ilha chamada Alasanda.
― Qual a distância daqui até Alasanda?
― Duzentos yojanas.
― Podes lembrar alguma coisa que tenhas feito lá?
― Sim, lembro.
― Percorreste, facilmente, duzentos yojanas.
Capítulo 34
Renascimento Simultâneo
― Nagasena, dois homens morrem aqui. Um renasce no mundo de Brahma, outro em Cachemira. Qual chega mais depressa?
― Ambos chegam ao mesmo tempo.
― Dá um exemplo.
― Maharajá, qual a tua cidade natal?
― A aldeia de Kalasi.
― Qual a distância daqui até Kalasi?
― Duzentos yojanas.
― E daqui até Cachemira?
― Doze yojanas.
― Pensa em Kalasi.
― Pensei.
― Pensa em Cachemira.
― Pensei.
― Qual foi o teu pensamento mais rápido?
― Pensei nos dois lugares com o mesmo tempo.
― Assim, nós renascemos com o mesmo tempo no mundo de Brahma e em Cachemira.
Capítulo 35
Elementos de Bodi [9]
― Nagasena, quantos são os elementos da iluminação (bojjhangâ)?
― Sete.
― E por quantos desses elementos alguém realiza a iluminação?
― Por um só: a investigação dos dharmas (dharmavicaya).
― Então, por que falar de sete elementos da iluminação?
― Se deixamos uma espada na bainha, podemos cortar alguma coisa com ela?
― Não.
― Assim também, sem a investigação dos dharmas, ninguém pode ser iluminado pelos outros sete elementos.
Capítulo 36
Predominância do Bem
― Nagasena, qual é o predominante? O bem ou o mal?
― Por quê?
― O bem é predominante. O mal é pouca coisa.
― Por quê?
― Quem faz o mal sente remorso, pois o pecado não aumenta. Quem faz o bem não sente remorso. Sem remorso está satisfeito. Satisfeito, sente-se alegre. Alegre, o corpo está tranquilo. A tranquilidade do corpo produz o bem estar. No bem estar, há tranquilidade da mente. A mente recolhida vê a verdade. Por isso o bem aumenta.
― Se um homem a quem cortaram as mãos e os pés, oferecer um punhado de flores ao Buda estará livre dos lugares de punição, durante 90 kalpas.
Capítulo 37
O Pecado Inconsciente é o Pior
― Nagasena, dois homens cometem uma ação má, um conscientemente, outro inconscientemente. Qual o mais culpado?
― O pecador inconsciente.
― Se um príncipe ou um funcionário cometer uma falta, sem saber, eu deveria puni-lo duplamente?
― Supõe uma bola de ferro incandescente. Ela tocaria em um homem desprevenido e depois em outro que estaria atento. Qual seria mais gravemente queimado?
― O desprevenido.
― Assim o pecador inconsciente comete pecado maior.
Capítulo 38
O Corpo Pode
Transportar-se Além do Mundo
― Nagasena, posso ir com este meu corpo a Uttarakuru, ao mundo de Brahma, a qualquer região do mundo?
― Sim.
― Como?
― Estás lembrado, Maharajá, de já teres pulado em um salto, certo número de côvados?
― Sim. Posso dar um salto de oito côvados.
― Como saltas oito côvados?
― Penso: “vou cair ali”. Pensando assim, meu corpo fica leve.
― Do mesmo modo, o religioso dotado de poderes mágicos, que dispõe do domínio da mente, carrega o corpo em sua mente e pela força da mente eleva-se nos ares.
Capítulo 39
Os Ossos de 100 “Yojanas”
― Nagasena, vocês dizem que há ossos que medem cem yojanas. Ora, se não existem árvores com esse comprimento, como é possível haver ossos tão compridos?
― Já não ouviste dizer que no mar se encontram peixes com quinhentos yojanas?
― Sim.
Ora, não há dúvida de que um peixe de quinhentos yojanas pode ter ossos de cem yojanas.
Capítulo 40
A Suspensão da Respiração
― Nagasena, vocês dizem que se pode deixar de respirar. Como é possível isso?
― Já ouviste alguém que está dormindo roncar?
― Sim.
― O ruído não cessava, quando a pessoa adormecida virava o corpo para um lado?
― Sim.
― Um homem que não exercitou o corpo, nem as virtudes, nem o pensamento, nem a sabedoria, pode deixar de roncar mediante um simples movimento corporal. Se assim é, por que não pode suspender a respiração quem exercitou o corpo, as virtudes, o seu pensamento, a sua sabedoria?
Capítulo 41
Samuda
― Nagasena, por que o mar se denomina samuda?
― Porque há no mar tanto sal quanta água, tanta água quanto sal.
Capítulo 42
Porque o Mar é Salgado
― Nagasena, por que o gosto do mar é um só, gosto de sal?
― Porque a água imobilizou-se no mar durante muito tempo.
Capítulo 43
Divisibilidade dos Dharmas
― Nagasena, a coisa mais fina pode ser dividida?
― Sim.
― Qual é a coisa mais fina?
― O Dharma (doutrina), mas não todos os dharmas (fenômenos), pois um dharma pode ser qualificado em fino ou grosso. Mas tudo o que é divisível pode ser dividido pela sabedoria, que ninguém pode dividir.
Capítulo 44
Diferença dos Dharmas
― Nagasena, os dharmas, que se denominam consciência, sabedoria, alma, são diferentes em essência ou em termos? Diferem apenas nos termos ou são idênticos em essência?
― A característica da consciência é conhecer, a da sabedoria julgar. A alma [10] não existe.
― Se não existe a alma, quem vê então a forma com o olho, quem ouve o som com o ouvido?
― Se existisse a alma que vê a forma com o olho, ouve o som com o ouvido, então, no caso de se arrancarem as portas do olhar, a alma, atenta no que houvesse pelo mundo afora, poderia ver as formas em um largo espaço. Ora, isso não acontece. Portanto, não existe alma.
Capítulo 45
Buda Distinguiu os Dharmas
Declarou o monge:
O Bem-aventurado fez uma coisa difícil.
― Qual?
― Enunciar a distinção de todos os dharmas imateriais, espirituais que se encontram em um só órgão dos sentidos: contato, sensação, concepção, pensamento, mente.
― Dá uma comparação.
― Se um homem pulasse de um barco no mar, tomasse na mão um pouco de água e provasse-a, poderia reconhecer a água do Ganges, do Aciravati, do Sarabhu, do Mahi?
― Seria muito difícil.
― Pois o Bem-aventurado fez algo muito difícil, distinguindo os dharmas.
― Muito bem, declarou o rei.
Capítulo 46
Epílogo
Disse o monge:
― Sabes, Maharajá, que horas são?
― Sei, Venerável. Já passaram as primeiras horas da tarde. Já se acenderam as luzes. Já se içaram as quatro bandeiras. Já se aproximam os portadores de presentes para o rei.
Declararam então os Ionacas:
― Maharajá, és inteligente, mas o monge é sábio.
― Sim – observou o rei –, o monge é sábio. Onde existir um mestre como ele e um discípulo como eu, não se gastará muito tempo na compreensão da doutrina.
Satisfeito com as respostas às suas perguntas, o rei ofereceu ao monge uma peça de tecido no valor de cem mil moedas, dizendo-lhe:
― Venerável Nagasena, a partir de hoje eu lhe garanto oitocentas refeições. E, em meu palácio, o reverendo poderá escolher aquilo que lhe for licito receber.
― Agradecido, Maharajá. Já tenho o necessário para viver.
― Sei, Reverendo. Mas deveis ser cuidadoso convosco e comigo para que não digam: “O monge Nagasena satisfez o rei Milinda, e, no entanto, nada recebeu do monarca”. E, quanto a mim, dirão: “O rei Milinda ficou satisfeito, mas não o demonstra”.
― Está bem, Maharajá.
― Como o leão cativo em uma jaula de ouro estende o pescoço para fora, assim eu, embora permaneça no mundo, aspiro à solidão. Mas, se eu deixasse o mundo pela vida religiosa, não viveria muito tempo, pois tenho muitos inimigos.
Então, o venerável Nagasena, uma vez respondidas as perguntas do Rei Milinda, levantou-se e voltou para o seu convento. Mas, depois da retirada do monge, perguntou o rei Milinda a si mesmo: “Quais foram minhas perguntas? Quais foram as respostas do reverendo?”
Por sua vez, o venerável Nagasena, estando já em sua cela, indagou de si mesmo: “Que foi que o rei me perguntou? Que lhe respondi eu?” e pensou: “O rei Milinda perguntou-me tudo, eu respondi-lhe tudo”.
No dia seguinte, pela manhã, vestiu-se, tomou sua tigela e seu manto, dirigiu-se ao palácio e foi sentar-se ao lado do rei. Milinda saudou-o e também sentado ao lado do monge, declarou:
― Não vá supor o Reverendo que, durante a noite, deixei de dormir, satisfeito, por haver interrogado Nagasena. De modo nenhum. Perguntei a mim mesmo: “quais foram minhas perguntas ao reverendo Nagasena? Perguntei-lhe tudo, ele respondeu-me tudo!”
Por sua vez, disse-lhe o monge:
― Também não suponha, Majestade, que passei a noite contente por haver respondido às suas perguntas. Não! Durante a noite disse-me a mim mesmo: “o rei Milinda perguntou-me tudo, eu respondi-lhe tudo”.
E assim aqueles dois homens estavam satisfeitos com a palestra que tinham mantido, no dia anterior.
[1] Kama ‒ Desejo, concupiscência, disposição ao gozo. Segundo o Budismo, Kama significa energia instintiva, desejo natural, que é um dos aspectos de Tanha (desejo de viver).
[2] Karma – A palavra karma significa ação, que se processa no plano físico ou no psicológico ou no social. Sendo ação, o karma é também causa e assim produz efeito. Segundo o Budismo, o processo cármico é continuo, no mundo fenomênico, no qual se incluem a natureza física e a psicológica.
Um ato bom ou mau resultará em efeito bom ou mau. Esse efeito será inseparável do Nomeforma que surgiu no futuro. Adverte ainda o Budismo que esse novo Nomeforma (Nama-Rupa) é de fato novo, não repete o anterior, pois o Budismo nega a alma como unidade que subsiste através do tempo.
[3] A morte separa a forma Rupa e a psicológica ou mental Nama. Mas o Nama continua como estrutura de efeitos, até a dissolução final, que precede a ressurreição da dinâmica dos efeitos em um novo ente, existente no plano físico. O intervalo entre a morte de um Nomeforma e o nascimento de outro Nomeforma decorre no inferno ou no céu. Se isso acontecer no inferno, o Nama sofrerá os efeitos dolorosos das más ações, efeitos que Nagasena diz serem fogo pior do que o do fogo natural. Essa concepção escatológica do Budismo é análoga à do Cristianismo. O inferno, embora temporário, segundo o Budista corresponderia ao purgatório do Catolicismo. Quanto ao fogo, Budismo, Catolicismo e Protestantismo estão concordes. O Budismo Tibetano, porém, em seu livro “Bardo Todol”, adverte que são ilusórios os tormentos da alma, durante a existência no mundo astral, intermediária entre a morte e renascimento.
[4] Buda, superior a todos os seres ‒ Nagasena expõe a concepção da personalidade de Buda, elaborada pela escola do Mahayana (Grande Veículo), embora o Milinda Panha seja livro aceito pelos Theravadins, adeptos da ortodoxia budista, que discorda dos pressupostos do Budismo do norte da Índia e do Tibet.
Segundo o Mahayana, Buda não se reduz ao homem que realizou o Nirvana. Buda é a personificação da Suprema Verdade, por isso mesmo o ser que usufrui da supremacia ontológica entre todos os seres existentes no Universo.
[5] Transmigração ‒ Segundo Deussen, The Philosophy of the Upanishads, a doutrina da transmigração estabelece que após a morte a alma continua viva, em outras condições de espaço e de tempo, podendo viver em outros astros ou entrar no corpo de um animal.
Nagasena rejeita a transmigração, mas o Budismo do Tibete admite-a, tanto assim que nesse país será punido quem pescar ou comer peixe. Acreditam os tibetanos que o peixe é um dos animais preferidos pelas almas que transmigram. Quem assa ou cozinha um peixe pode estar assando ou cozinhando o seu pai ou mãe, se já tiverem morrido.
[6] Vide Nota 51.
[7] Samsara ‒ Processo cósmico continuo de formação e destruição de formas, desde as materiais até as espirituais. É o processo da evolução fenomênica, ao qual está condicionada a permanência da alma humana, no curso dos renascimentos e das mortes.
As práticas ascéticas têm por objetivo libertar a alma do homem do intérmino giro, na esfera fenomênica, no Samsara.
Para o Budismo a libertação da roda dos renascimentos é a realização do Nirvana, a vida sem sofrimento, a bem-aventurança infinda.
[8] Yojana ‒ Medida de extensão variável que, em unidades métricas, varia de 5 a 15 quilômetros.
[9] Budhi ‒ A plenitude da consciência, quando o espírito humano sabe da razão de ser de tudo quanto há no Universo. Foi essa plenitude de consciência que Buda atingiu, alcançando o Nirvana à sombra de uma árvore, após demorada meditação e concentração das faculdades do espírito. Os orientais denominam “iluminação” a essa plenitude de consciência. A palavra Buda significa iluminado.
[10] Para o pensamento hindu confundem-se os conceitos de realidade e de permanência. Os budistas negam a permanência do princípio espiritual, a alma, e daí a impossibilidade de ser a alma imortal, eterna. Para o budismo, alma seria apenas função, em vez de princípio. Sendo impermanente, não será verdadeira, e não sendo verdadeira não pode ser real e muito menos imortal. Aliás, esse postulado do budismo não é tão herético como poderia parecer, pois segundo o deus da morte, Yama, no Katha Upanichada, “nem os deuses são imortais. Imortal, somente o Eterno”.
MIlINDA PANHA, Rio de janeiro, 1958. tradução de Raul Xavier, disponível em www.hadnu.org