Introdução às Histórias.
No Sul do país há uma cidade chamada "Delícia das donzelas", Lá vivia um rei chamado Poder Imortal. Ele conhecia todos os trabalhos que tratavam da sábia direção da vida. Seus pés tinham ficado deslumbrantes com a confusão dos raios de luz das jóias que havia nos diademas dos poderosos reis, que se ajoelhavam diante dêle. Ele alcançara o conhecimento de tôdas as artes que embelezam a vida. O rei tinha três filhos. Chamavam-se Rico-Poder, Fero-Poder e Infinito-Poder, e eram imbecis completos.
Ora, quando o rei percebeu que êles eram rebeldes à instrução, convocou seus conselheiros e disse: - Os senhores não ignoram que êstes meus filhos, sendo hostis à instrução, carecem de discernimento. De modo que, quando os contemplo, meu reino não me traz felicidade, embora não tenha espinhos aparentes. Pois há sabedoria no provérbio :
A ter filhos idiotas, mortos ou que não tenham nascido,
É preferível os mortos ou os que não nasceram,
Pois se isto nos causa alguma tristeza,
Os tolos nos entristecem a vida inteira.
E este outro:
Para que serve uma vaca
Que não dá leite nem cria?
De que serve ter um filho
Ignorante e desobediente?
É preciso por isto que se imagine um meio de despertar sua inteligência.
E êles replicaram, um após outro: - ó Rei, primeiro se aprende a gramática durante doze anos. Quando êsse assunto fôr conhecido, então se aprende o que há nos livros da religião e da vida política. E então a inteligência desperta.
Mas um dêles, um conselheiro chamado Keen, disse: - ó Rei, a duração da vida é limitada, e as ciências orais exigem muito tempo para serem aprendidas. Portanto, deixa que se invente uma espécie de epítome para despertar sua inteligência. Há um provérbio que diz:
Já que a ciência verbal não tem fim,
Já que a vida é curta e cheia de obstáculos,
Que se escolha e se fixe firmemente os fatos principais,
Como os cisnes extraem o leite misturado com a água.
- Ora, há aqui um Brâmane chamado Vishnusharman, com uma reputação de competência em numerosas ciências. Confia-lhes os príncipes, pois. Ele certamente os fará inteligentes num abrir e fechar de olhos.
Ouvindo isto o rei mandou chamar Vishnusharman e disse: Santo homem, como um favor para mim, faze estes príncipes mestres incomparáveis na arte da vida prática. Em troca eu te darei cem concessões de terras.
E Vishnusharman respondeu ao rei: ó Rei, ouvi. Eis a pura verdade. Não sou homem que venda a erudição em troca de cem concessões de terra. Mas, se dentro de seis meses, eu não tornar os rapazes familiares, com a arte de bem viver, renunciarei a meu bom nome. Para encurtar o assunto. Ouvi o meu rugido de leão. Minha arrogância não provém de ganância por dinheiro. Além disso, não tenho utilidade para o dinheiro; tenho oitenta anos e todos os objetos do desejo sensual perderam seu encanto. Mas a fim de satisfazer vosso pedido, demonstrarei um espírito brincalhão com respeito a assuntos artísticos. Tomai nota da data. Se, dentro de seis meses, eu não conseguir tornar vossos filhos mestres incomparáveis na arte de bem viver, então Vossa Majestade tem a permissão de mostrar-me vosso majestoso traseiro nu.
Depois do rei, cercado de seus conselheiros, ter ouvido a promessa tão pouco protocolar do Brâmane, ficou penetrado de admiração, confiou-lhe os príncipes e experimentou suma satisfação.
Neste meio tempo, Vishnusharman levou os meninos para sua casa e fêz com que êles aprendessem de cor! cinco livros compostos por êle e chamados: (I) A Perda de Amigos, (II) A Conquista de Amigos, (III) Corvos e Corujas, (IV) Perda de Proveitos, (V) Ação Inconsiderada.
Isso os príncipes aprenderam, e no fim de seis meses satisfizeram a receita. Desde aquêle dia êste trabalho sôbre a arte de bem viver chamado o Panchatantra, ou os "Cinco Livros", tem percorrido o mundo, tendo em mira o despertar da inteligência dos jovens. Para resumir o assunto.
Quem quer que o aprenda de cor
Ou que, ouvindo-o contar,
Venha a aprendê-lo
Nunca terá reveses na vida,
Mesmo que tenha por inimigo
O rei dos céus.
Os Sapos que montaram na Cobra
Havia outrora, em certa região, uma velha cobra preta, cujo nome era Veneno-Lento. Ela considerou a situação sob êste ponto de vista: - Como poderei continuar a manter-me sem sobrecarregar minhas fôrças? Dirigiu-se então a uma lagoa contendo muitos sapos e pareceu estar muito desanimada.
Enquanto assim esperava, um sapo apareceu na beira da água e perguntou: - Titia, por que é que hoje a senhora não se agita à procura de comida, como de costume?
- Meu caro amigo, disse Veneno-Lento, estou angustiada. Por que haveria de desejar comida? Pois esta noite, enquanto me agitava à procura de comida, vi um sapo e aprontei-me para apanhá-lo. Mas êle me viu, e temendo a morte, fugiu para o meio de alguns Brâmanes atentos à recitação sagrada, e nem eu vi onde êle se meteu. Mas na água, à beira do lago estava o dedão grande de um menino Brâmane, e tolamente enganada por sua semelhança com o sapo, eu mordi-o e o menino morreu imediatamente. Então o triste pai amaldiçoou-me nestes têrmos: - Monstro! Já que mordeste meu inofensivo filho, por êste pecado te tornarás um veículo de sapos, e te alimentarás do que êles te quiserem dar. Por isto vim para aqui para servir-lhes de veículo.
Ora o sapo contou isto a todos os outros. E todos êles, um por um, radiantes, foram e contaram ao sapo-rei, cujo nome era Pé-d’água. Ele, por seu turno, acompanhado de seus conselheiros, saiu apressadamente do lago - pois considerou o caso um acontecimento extraordinário - e montou na cabeça de Veneno-Lento. Os outros também, por ordem de idade, montaram em suas costas. E ainda a outros, não encontrando lugar vago, iam saltando atrás da cobra. Ora, Veneno-Lento, que tinha em vista ganhar a vida, mostrou-lhes uma grande variedade de voltas caprichosas. E Pé-d’água, gozando o contacto com seu corpo disse-lhe:
Eu prefiro montar Veneno-Lento
Ao mais lindo cavalo,
Elefante, carruagem
Ou mesmo palanquim.
No dia seguinte Veneno-Lento foi bastante velhaca para mover-se muito devagar. De modo que Pé-d’água disse: Meu caro Veneno-Lento, por que não nos leva agradavelmente, como antes?
E Veneno-Lento disse: - Ó Rei, não tenho poder para locomover-me hoje por falta de comida. - Meu caro amigo, disse o rei, coma os sapos plebeus.
Quando Veneno-Lento ouviu isto, estremeceu de alegria em todos os seus membros, e apressou-se em dizer: - Ora, isso é parte da maldição lançada sôbre mim pelo Brâmane. Por este motivo sinto-me muito satisfeita com sua ordem. E então comeu sapos ininterruptamente e em muito poucos dias tornou-se forte. E encantada e rindo intimamente disse:
A peça foi boa. Todos os sapos
Passaram para meu poder.
Só resta uma pergunta:
Quanto tempo durarão?
Pé-d’água, por seu lado, ficara enganado com as manhas de Veneno-Lento e não notava nada.
O Macaco implacável
Numa certa cidade havia um rei chamado Lua, que tinha um bando de macacos para distração de seu filho. Eram mantidos em ótimas condições por provisões diárias e alimentos em grandes variedades.
Para distração do mesmo príncipe havia um rebanho de carneiros. Um dêles estava sempre faminto, de modo que entrava na cozinha a tôdas as horas do dia e da noite e engulia tudo o que via. E os cozinheiros batiam-lhe com qualquer vara ou objeto que estivesse à mão.
Ora, quando o chefe dos macacos observou isto, refletiu: - Deus do Céu. Esta guerra entre carneiro e cozinheiros significará a ruína dos macacos. Pois o carneiro é um comilão, e quando os cozinheiros; Se enfurecem batem-lhe com o que está mais próximo. Suponhamos que um dia não encontrem nada e lhe batam com um tição. Então aquêle dorso largo e lanudo pegará facilmente fogo. E se o carneiro enquanto estiver pegando fogo, precipitar-se na cocheira aqui perto, ela se incendiará, pois e quase toda de sapé, e os cavalos queimados. Ora, o livro clássico a ciência veterinária receita banha de macaco para aliviar queimaduras de cavalos. Assim sendo, ameaçados de morte.
Tendo chegado a esta conclusão, êle reuniu os macacos e disse:
Ultimamente armou-se uma briga
Entre o carneiro e os cozinheiros;
Que, sem sombra de dúvida,
Ameaça a vida dos macacos.
Porque, se brigas insensatas dilaceram
Diariamente uma casa,
Os que quiserem ficar com vida
O melhor que fazem é mudar-se.
- Portanto, abandonemos a casa e refugiemo-nos nos bosques antes de morrermos todos.
Mas os vaidosos macacos riram de seu aviso e disseram: - Oh! Você está ficando velho e perdendo o juízo. Suas palavras o provam. Não temos a menor intenção de renunciar aos celestiais acepipes que os príncipes nos dão com suas próprias mãos, para ir comer frutas apimentadas, amassadas, amargas e azedas das árvores lá da floresta.
Tendo ouvido isto, o chefe dos macacos fêz uma careta e disse: - Ora vamos! Vocês são tolos. Não pensam nas conseqüências desta agradável vida. Por enquanto é agradável, no fim será pior que veneno. Em todo o caso eu não contemplarei a morte dos meus. Vou mesmo para a floresta.
Com estas palavras o chefe abandonou-os e foi para a floresta. Um dia, após sua partida, o carneiro entrou na cozinha. E o cozinheiro, não encontrando outra coisa, apanhou um tição meio consumido e ainda em chamas, e bateu-lhe. A vista disso, com metade do corpo em chamas, o carneiro precipitou-se balindo na cavalarIça próxima. Aí revelou-se até que chamas surgiram de todos os lados - pois a cocheira era quase tôda de sapê - e dos cavalos que Ia estavam amarrados, uns morreram, com os olhos esbugalhados, enquanto outros, quase mortos das queimaduras, e rinchando de dor, mordiam os cabrestos, de modo que ninguém sabia o que fazer.
Nesse estado de coisas, o rei muito triste reuniu os cirurgiões veterinários e disse: - Receitem algum método para aliviar esses cavalos da dor de suas queimaduras. E êles, recordando-se dos ensinamentos de sua ciência, receitaram nessa emergência aplicações de gordura de macaco.
Quando o rei ouviu isto, ordenou a matança dos macacos. E para poupar palavras, todos foram mortos.
Ora, o macaco chefe não viu com os próprios olhos êsse ultraje perpetrado nos seus. Mas ouviu a história, à medida que se espalhava de bôca em bôca, e não a recebeu mansamente. Como diz o provérbio:
Se o inimigo ultraja uma casa.
E o dono vem a perdoá-lo
Seja por mêdo ou ganância,
É o homem mais vil desta terra.
Ora, enquanto o macaco velho vagava sedento, chegou a um lindo lago, lindo em virtude de suas flores de lótus E enquanto o observava atentamente, notou pegadas que iam em direção do lago, mas nenhuma em sentido contrário. Sôbre êsse ponto refletiu: - Deve haver um animal feroz aqui nestas águas. Assim sendo é melhor eu ficar distanciado e beber de um talo ôco de lótus.
Depois de ter feito isto surgiu da água um demônio antropófago, com um colar de pérolas a adornar-lhe o pescoço, que assim falou: - Senhor, eu como todos os que entram na água. De modo que não há ninguém mais sagaz do que o senhor, que bebe dêste modo. Gostei do senhor. Diga o que mais deseja.
- Senhor, disse o macaco, quantos o senhor é capaz de comer? E O demônio replicou: - Posso comer centenas, milhares, miríades, sim, centenas de milhares se entrarem na água. Lá fora, um chacal é capaz de me dominar.
- E eu, disse o macaco, tenho um ódio mortal a um rei. Se o senhor me der êsse colar de pérolas, eu despertarei sua Cobiça com uma história plausível, e farei com que êsse rei entre no lago com sua comitiva. E à vista disso o demônio entregou-lhe o colar de pérolas.
Depois o povo viu o macaco vagando sôbre as árvores e os telhados dos palácios com um colar de pérolas a aformosear-lhe o pescoço. Perguntaram-lhe: - Então, chefe, onde esteve todo êste tempo? Onde conseguiu um colar de pérolas assim? Sua deslumbrante beleza turva o próprio sol.
E o macaco respondeu: - Em certo lugar da floresta há um lago habilmente escondido, uma criação do deus da riqueza. Por mercê dêle, se alguém lá se banhar ao nascer do sol no domingo, sai com um colar de pérolas igual a êste a embelezar-lhe o pescoço.
Ora, o rei ouvindo isto de alguém, mandou chamar o macaco e perguntou-lhe: - Isso é verdade, chefe? - Ó rei, disse o macaco, tens uma prova visível no colar de pérolas no meu pescoço. Se também queres um, manda alguém comigo e eu lhe mostrarei.
Ouvindo isto disse o rei: - A vista dos acontecimentos eu mesmo irei com minha comitiva, a fim de podermos conseguir inúmeros colares de pérolas. - Ó rei, disse o macaco, tua idéia é encantadora.
Então o rei e sua comitiva puseram-se a caminho, ávidos de colares de pérolas. E o rei no seu palanquim apertava o macaco de encontro ao peito, patenteando-lhe seu favor, enquanto viajavam. Pois há sabedoria no ditado:
O cabelo envelhece com os anos,
Envelhecem os dentes, os olhos e os ouvidos,
Mas embora as estações voem,
Uma coisa é eternamente jovem - a avidez.
De madrugada chegaram ao lago e o macaco disse, - Ó rei, os que entram ao nascer do sol obtém o que desejam. Torna ciente todo o teu séquito, a fim de que êles se precipitem num só mergulho. Tu, no entretanto, deves entrar comigo, por que eu escolherei o lugar que achei antes e mostrar-te-ei colares em abundância. E assim todo o séquito entrou e foi devorado pelo demônio.
Então, como se demorassem, disse o rei ao macaco: - Então, chefe, por que tanto se demora a minha comitiva? E o macaco, antes de responder, apressadamente subiu numa árvore e disse: - Ó rei infame, tua comitiva foi comida pelo demônio que vive na água. Minha inimizade a ti, proveniente da morte de todos os meus, chegou a um feliz têrmo. Agora podes ir embora. Não deixei que entrasses porque lembrei-me que eras o rei. Assim tramaste a morte dos meus e eu a dos teus.
Ouvindo isto, o rei apressou-se em regressar, tomado de profunda dôr.
Os fazedores de Leão.
Numa certa cidade havia quatro Brâmanes que eram amigos. Três dêles tinham atingido o limite de tôda a erudição, mas não tinham juízo. O outro achava a erudição desagradável; não tinha senão juízo.
Um dia reuniram-se para uma consulta. - De que vale a instrução, disseram êles, se a pessoa não viaja, não obtém a proteção dos reis, e não consegue dinheiro? Seja como for, viajemos.
Mas depois de terem caminhado um pouco, o mais velho deles disse: - Um de nós, o quarto, é um néscio, a única coisa que tem é juízo, ninguém consegue o favor dos reis. Portanto, não dividiremos nossos lucros com êle. É melhor que êle volte para casa.
Então o segundo disse: - Meu inteligente amigo, falta-lhe erudição. Por favor, volta para casa. Mas, o terceiro disse: - Não, não. Isto não é procedimento. Desde crianças que brincamos juntos. Vem, meu nobre amigo. Terás uma parte do que ganharmos.
Com êste ajuste prosseguiram a viagem, e a floresta encontra- ram os ossos de um leão Ao que, um dêles disse: - Uma boa oportunidade para pôr à prova a maturidade de nossa ciência. Aqui está uma criatura morta. Restituamos-lhe a vida por meio da erudição que honestamente conseguimos.
Então disse: - Eu posso dar-lhe pele, carne e sangue. Disse o terceiro: - Eu posso dar-lhe vida.
Portanto o primeiro reuniu o esqueleto, o segundo deu-lhe a pele, a carne e o sangue. Mas enquanto o terceiro estava aplicado a dar-lhe o sôpro da vida, o que tinha juízo aconselhou que não o fizesse, observando: - Isto é um leão. Se lhe restituíres a vida êle nos matará a todos.
- Seu simplório! disse o outro. não serei eu quem reduzirá a ciência a nada. - Neste caso, veio a resposta, espere um momento, até que eu trepe numa boa árvore.
Depois dêle ter feito isto, o leão foi ressuscitado, levantou-se e matou Os três. Mas o homem que tinha juízo, depois do leão se ter ido embora, desceu da árvore e foi para casa.
E é por isto que eu digo:
Erudição é menos que bom senso
Por isso prefiram a inteligência:
Sábios sem juízo no seu orgulho
Fizeram um leão; depois morreram.
A Jovem que fora Rata e tornou a virar Rata
As Ondas do Ganges estavam salpicadas de espuma proveniente do salto dos peixes amedrontados com o barulho das águas, que se quebravam na praia áspera e rochosa. Na margem havia uma ermida repleta de santos homens, que dedicavam seu tempo ao desempenho dos ritos sagrados - cantos, abnegação, mortificação, jejum e sacrifício. Eles só bebiam água purificada, e isto mesmo em goles medidos. Seus corpos definhavam com uma dieta de bulbos, raízes, frutas e musgo. Suas vestes se resumiam numa tanga feita de casca de árvore.
O chefe da ermida chamava-se Yajnavalkya. Depois dêle se ter banhado no rio sagrado e ter começado a lavar a bôca, uma ratinha desprendeu-se do bico de um gavião e veio cair-lhe na mão. Quando êle viu o que era, colocou-a numa fôlha de figueira, repetiu o banho e a lavagem da bôca e celebrou uma cerimônia de purificação. Então, através do poder mágico de sua santidade, converteu-a numa menina e levou-a consigo para a ermida.
Como sua mulher não tinha filhos, êle lhe disse: - Tome-a minha cara mulher. Ela tornou-se sua filha e você precisa educá-la cuidadosamente. E assim a mulher educou-a e estragou-a com mimos. Logo que a menina chegou à idade de doze anos, a mãe viu que estava pronta para o casamento e disse ao marido: - Meu caro marido, você não vê que está passando o tempo do casamento de sua filha?
E êle replicou: - Tem razão, minha cara. Diz o ditado:
Porque se ela continuar solteira,
Se casará com quem quiser,
Portanto casem-na em tenra idade
Assim aconselha o sábio vindo do céu.
Se ela, solteira, impura,
Ficar por muito tempo em casa
Talvez não se case mais
E fique uma pobre solteirona.
Um pai, pois, para evitar pecado
Casa-a dentro do prazo marcado
(Seja qual fôr o marido)
Bom, indiferente ou ruim.
Bom, eu tentarei dá-Ia a algum da mesma posição que ela. Você conhece o ditado:
Onde a riqueza é igual
E igual a família,
O casamento (ou a amizade) está garantido;
Mas não quando um é rico e o outro pobre.
Procura dinheiro, aparência
E conhecimento dos livros,
Boa família, mocidade,
Posição e verdade.
Portanto, se êle estiver de acôrdo, eu invocarei o abençoado sol e lha darei. - Não vejo mal nenhum nisso, disse a mulher. Faça isso.
O santo homem, pois, chamou o sol, que apareceu sem demora e disse: - Santo homem, porque me chamas? Disse o pai: - AquI está minha filha. Tenha a bondade de casar-se com ela. E em seguida virando-se para a filha disse: - Menina, você gosta dêle, esta abençoada lâmpada dos três mundos? - Não, papai, disse a menina. Ele é ardente de mais. Eu não poderia gostar dêle. Por favor, chame outro, superior a êle.
Ouvindo isto, disse o santo homem ao sol: - Bem-aventurado,. haverá outro superior a ti? E o sol replicou: - Sim, a nuvem ainda é superior a mim. Quando ela me cobre eu desapareço.
Então o santo homem mandou chamar a nuvem e disse à donzela: - Menina, esta te agrada? - Não, disse ela. Esta é escura e frígida. Dá-me a alguém que seja mais belo.
Perguntou então o santo homem: - Ó nuvem, haverá alguém superior a ti? E a nuvem respondeu: - O vento é superior a mim.
Ele então chamou o vento e disse: - Menina, dou-te a êle. - Pai, disse ela, êste é muito irrequieto. Por favor, convida outro ainda superior a êle. Então disse o santo homem: - Ó vento, haverá alguém superior mesmo a ti? - Sim, disse o vento. A montanha é superior a mim.
Então êle invocou a montanha e disse à donzela: - Menina, dou-te a ela. - Oh, papai, disse ela. Ela é tão áspera e dura. Por favor, dá-me a outra pessoa.
Então o santo homem perguntou: - Ó majestosa montanha, haverá alguém superior até a ti? - Sim, disse a montanha. Os ratos são superiores a mim.
Então o santo homem chamou um rato, e apresentou-o à menina dizendo: - Menina, gostas dêste rato?
No momento em que ela o viu, sentiu: - Da mesma espécie que eu, da mesma espécie que eu; e seu corpo sobressaltou-se e estremeceu e ela disse: - Querido pai, converte-me num rato e dá-me a êle. Então poderei tomar conta da casa de acôrdo com a minha espécie.
E o pai, pelo mágico poder de sua santidade, converteu-a numa ratinha e entregou-a a êle.
E eis porque eu digo:
Embora a montanha, o sol, a nuvem e o vento
Fossem seus pretendentes,
A moça ratinha virou de novo rato.
É difícil dominar a natureza.
O Duelo entre o Elefante e o Pardal
Num espesso do matagal viviam um pardal e a mulher, que tinham construído o ninho num galho de Tamal e com o tempo surgiu uma família.
Ora, um dia um elefante do mato, doente de febre, ficou aflito com o calor e veio para debaixo do Tamal à procura de sombra. Cego com a febre, êle sacudiu com a ponta da tromba o ramo onde os pardais tinham o ninho e quebrou-o. Resultou disto ficarem esmagados os ovos dos pardais, embora Os pais - estando predestinadas outras vidas - mal tivessem escapado da morte.
Então a pardoca lamentou, desolada de dor, a morte de Seus filhotes. E afinal, ouvindo seus lamentos, um pica-pau, grande amigo dela, entristecido com sua dor, veio e disse-lhe: - Minha cara, porque lamentas em vão? Pois diz a Escritura:
Os sábios não lamentam
O que está perdido, morto ou acabado.
Entre os sábios e os loucos
A diferença está nisto.
- Esta doutrina é boa, disse a pardoca, mas que importa isso? Este elefante, - maldita sua febre! - matou meus bebês. De modo que, se você é meu amigo, imagine algum plano para matar êsse grande elefante. Se eu conseguisse isso, sentiria menos mágoa pela morte de meus filhos.
- Minha senhora, disse o pica-pau, sua observação é verdadeira.
Pois diz o provérbio:
Embora de diferente casta,
Amigo na adversidade é amigo de verdade;
Todo mundo é teu amigo
Enquanto dura a riqueza.
Agora vejamos o que posso imaginar. Mas devo dizer-lhe que eu também tenho um amigo, um mosquito, chamado Zumbido de Alaúde. Eu voltarei com êle, a fim de que êsse infame elefante possa ser morto.
Então êle foi com a pardoca, encontrou o mosquito e disse: - Caro amigo, esta senhora pardoca é minha amiga. Ela está de luto porque um miserável elefante quebrou seus ovos. Por isso você precisa nós auxiliar enquanto eu executo um plano para matá-lo.
- Meu bom amigo, disse o mosquito, só há uma resposta possível. Mas eu também tenho um amigo íntimo, um sapo chamado Mensageiro das Nuvens. Façamos as coisas direito e convidemo-lo para uma consulta.
Então os três foram juntos e contaram ao Mensageiro das Nuvens tôda a história. E o sapo disse: - Como é fraco aquêle pobre Elefante, contraposto a uma grande multidão enfurecida! Mosquito, você tem que ir e zumbir no seu ouvido febril, a fim de que ele feche os olhos, deliciado ouvindo sua música. Então o pica pau lhe arrancará os olhos. Depois eu me sento na beira de um fôsso e ponho-me a coaxar. E êle, estando com sêde, quando me ouvir se aproximará esperando encontrar água. Quando êle chegar ao fôsso cai e morre.
Tendo executado o plano, o febril elefante fechou os olhos encantado com o canto do mosquito, foi cegado pelo pica pau, pôs-se a vagar sedento com sol claro, seguiu o coaxar do sapo, chegou ao fôsso, caiu e morreu. E é por isto que digo:
Picapau e pardoca
Com o sapinho e o mosquito
Atacando em massa
Liquidaram o elefante.
A Garça que gostava de carne de Caranguejo
Havia outrora uma Garça, em certo lugar à beira de um lago. Sendo velha, procurou um meio fácil de apanhar peixes para viver. Começou por demorar-se à beira do lago, fingindo irresolução, não comendo nem os peixes a seu alcance.
Ora, entre os peixes vivia um caranguejo. Este acercou-se e disse: - Tia, porque não fazes caso hoje de tuas refeições e divertimentos comuns? E replicou a garça: - Enquanto eu era gorda e próspera à custa de comer peixe, passava meu tempo agradavelmente, gozando o paladar de vocês. Mas em breve vocês sofrerão uma desgraça. E como eu estou velha, isso interromperá o agradável curso de minha vida. Eis porque me sinto desanimada.
- Tia, disse o caranguejo, de que natureza é a desgraça? E a garça continuou: - Hoje eu ouvi a conversa de alguns pescadores enquanto passavam pelo lago. Este grande lago está cheio de peixe - diziam. Nós experimentaremos atirar a rêde amanhã ou depois. Mas hoje iremos ao lago perto da cidade. Sendo assim, vocês estão perdidos, meu fornecimento de comida está cortado, e eu também -estou perdida, e com êste triste pensamento estou hoje indiferente .à comida.
Ora, quando os habitantes da água ouviram o relatório da velhaca, todos temeram pela vida, e assim imploraram à garça: - Tia!
Mãe! Irmã! Amiga! Pensadora! Já que nos informaste da calamidade, também conheces o remédio. Por favor, salva-nos das garras da morte.
Então a garça falou: - Eu sou um pássaro e não tenho competência para lutar com o homem. No entanto, posso fazer isto. Posso transferi-los de um lago para outro, um lago sem fundo. Os habitantes das águas ficaram tão iludidos com a ardilosa conversa, que disseram: - Tia! Amiga! Ó parente altruísta! Leva-me primeiro! Eu primeiro! Nunca ouviste isto?
Os corações corajosos deleitam-se
Em pagar o preço do misericordioso sacrifício,
Não reputam em nada a vida, e ela acaba
A serviço de um amigo.
Então a velha tratante riu intimamente e refletiu lá consigo: - Minha astúcia pôs êsses peixes em meu poder. Eles devem ser comidos muito comodamente. Assim tendo refletido maduramente prometeu o que a multidão de peixes implorava; levantou alguns no bico, carregou-os uma certa distância até uma pedra lisa, e ali comeu-os. Todos os dias fazia a viagem com suma delícia e satisfação e encontrando os peixes, mantinha sua confiança com invencionices sempre novas.
Um dia o caranguejo, perturbado pelo temor da morte, importunou-a com as seguintes palavras: - Tia, por favor, salva-me também das garras da morte. E a graça refletiu: - Já estou cansada desta invariável dieta de peixe. Gostaria de prová-lo. Ele é diferente, um petisco. E assim, apanhou-o e voou pelos ares.
Mas já que ela evitava tôdas as extensões d’água e parecia estar planejando pousar sôbre a rocha abrasada de sol, o caranguejo perguntou-lhe: - Tia, onde fica o lago sem fundo? E a garça riu e respondeu: - Vês aquela rocha larga abrasada de sol? Todos os habitantes das águas ali encontraram repouso. Agora chegou tua vez de lá repousar.
Então o caranguejo olhou para baixo e viu a grande rocha de sacrifício, tornada mais horrenda por causa dos montes de esqueletos de peixes. E pensou: - Ai de mim!
Se queres brincar com serpentes
Mora com inimigos traidores:
Evita os amigos falsos, insensatos,
Volúveis, tendo em mira fins inconfessáveis.
Ora, ela já comeu os peixes cujos esqueletos estão espalhados aos montes. De modo que, qual seria para mim a ação oportuna? E no entanto, nem é preciso refletir.
Teme as coisas horríveis, enquanto
Elas não aparecem;
Mas em face do perigo,
Fere, e esquece teus temores.
Por isto, antes dela me deixar cair, eu agarro-lhe o pescoço com as minhas quatro tenazes.
Quando o fêz, a garça tentou fugir, mas sendo uma tola, não conseguiu evitar a pressão das garras do caranguejo e foi decapitada.
Então o caranguejo penosamente voltou para o lago, arrastando a cabeça da garça, como se fôsse um talo de lótus. E quando chegou no meio dos peixes êles disseram: - Irmão, porque voltaste? Ao que êle mostrou a cabeça como credencial e disse: - Ela seduziu-os habitantes das águas de todos os lugares, enganou-os com suas prevaricações, deixou-os cair sôbre uma rocha lisa, não muito longe daqui, e comeu-os. Mas eu, estando predestinado a viver mais, notei que ela exterminava os crédulos, e aqui estou de volta, com a cabeça dela. Esqueçam seus aborrecimentos. Todos os habitantes das águas viverão em paz.
O Macaco indócil
Num recanto da Floresta havia um bando de macacos, que encontraram um vaga-lume numa noite de inverno, quando estavam horrivelmente desanimados. Examinando o inseto, pensaram que fôsse fogo, de modo que o apanharam com cuidado, cobriram-no com capim sêco e fôlhas, depois estenderam os braços, as ilhargas, os ventres e os peitos, coçaram-se e entregaram-se à ilusão de que estavam aquecidos. Um dêles em particular, estando com muito frio, soprou o vaga-lume repetidamente e com muita atenção.
Nisso um pássaro chamado Cara de Agulha, levado pelo destino hostil a seu próprio extermínio, voou de sua árvore e disse ao macaco: - Meu caro senhor, não trabalhe em vão. Isto não é fogo. É um vaga-lume.
Ele, entretanto, não ligou a seu aviso, mas continuou soprando, e nem parou quando o outro tentou novamente dissuadi-lo. Para encurtar razões, quando o pássaro o aborreceu chegando perto e gritando-lhe no ouvido, agarrou-o, arremessou-o de encontro a um rochedo, esmagando-lhe o rosto, olhos, cabeça e pescoço, de modo que Cara de Agulha morreu.
E é por isto que digo:
Nenhuma faca domina a pedra
Nem curva a árvore inflexível;
Nenhum bom conselho de Cara-de-Agulha
Deu remédio à indocilidade.
A Cabra do Brâmane
Em certa cidade vivia um Brâmane chamado O Amigo, que tomara a si o trabalho de manter o fogo sagrado. Um dia no mês de Fevereiro, quando soprava uma brisa suave, quando o céu estava velado de nuvens e uma chuva miúda caía, êle dirigiu-se a outra aldeia a fim de pedir uma vítima para o sacrifício, e disse a certo homem: - Ó sacrificador, desejo fazer uma oferenda no próximo dia da lua nova - Por favor dá-me uma vítima. E o homem deu-lhe uma cabra gorda como prescreve a Escritura. O outro examinou-a, achou-a sadia colocou-a no ombro e voltou apressadamente para sua cidade.
Ora, na estrada êle se encontrou com três vagabundos que estavam esfomeados, e que, vendo o gordo animal no seu ombro, murmuraram entre si: - Ora vamos! Se pudéssemos comer aquêle bicho, poderíamos caçoar dêste tempo chuvoso. Vamos enganá-lo, apanhar a cabra, e afugentar o frio.
Então, o primeiro dêles mudou de roupa, saiu de um atalho ao encontro do Brâmane, e assim dirigiu-se àquele homem de vida piedosa: - ó piedoso Brâmane, porque estás fazendo uma coisa tão abstrusa e ridícula? Estás carregando nos ombros um animal impuro, um cão.
Ouvindo isto o Brâmane foi dominado pela raiva e disse: - És cego, homem, a ponto de chamares de cão uma cabra? - ó Brâmane, disse o ladrão, não te zangues. Segue o teu caminho.
Mas depois dêle ter andado um pouco mais, o segundo vagabundo encontrou-o e disse: - Ai de mim, santo homem, ai de mim! Mesmo que êsse bezerro morto fôsse de estimação, não devias carregá-lo nos ombros.
Então o Brâmane disse encolerizado: - És cego, homem? Pois chamas uma cabra de bezerro? E disse o ladrão: - Santo homem, não te encolerizes. Falei por ignorância. Faze como quiseres.
Mas depois dêle ter andado mais um pouquinho pela floresta, o terceiro vagabundo, mudando roupa, encontrou-o e disse: - Senhor, isto é absolutamente impróprio. Estás carregando um burro nas costas. Por favor larga isto, antes que outro te veja.
Então o Brâmane concluindo que a cabra era um duende em forma de quadrúpede, atirou-a no chão, e foi para casa aterrorizado. Neste ínterim, os três vagabundos se encontraram, apanharam a cabra e executaram o seu plano. E eis porque eu digo:
Tomem nota dos marotos fortes, destros e hábeis.
Que roubaram o Brâmane de sua cabra.
Além disso, há muito juízo nisto:
Haverá homem que não se deixe enganar
Pela atividade de empregados novos,
O elogio de convivas, as lágrimas das donzelas,
E a eloqüência dos velhacos?
Além disso, deve-se evitar brigas com uma multidão, por fracos que sejam os que a compõem. Como diz o verso:
Acautela-te da turba enfurecida;
Uma multidão é uma coisa tremenda:
As formigas devoraram a cobra gigante
Apesar de tôda sua agilidade.
A Cobra na barriga do Príncipe
Em certa cidade habitava um rei cujo nome era Divino. Tinha um filho que definhava dia a dia em todos seus membros, porque uma cobra fazia casa em sua barriga, em vez de fazê-lo num formigueiro. Então o príncipe ficou desanimado e foi para outro país. Numa cidade dês se país êle mendigava, passando tempo num grande templo.
Ora, nessa cidade havia um rei chamado Dádiva, que tinha duas filhas já mocinhas. Uma dessas inclinava-se todos os dias aos pés do pai, saudando-o: - Vitória, ó Rei, enquanto a outra dizia: - Tuas virtudes, ó Rei.
Em conseqüência disto o rei encolerizou-se e disse: - Vêde conselheiros. Esta jovem fala com malícia. Dêem-na a algum estrangeiro. Que ela tenha o que merece. Com isto concordaram os conselheiros, e deram a princesa, com muito poucas empregadas, ao príncipe que habitava no templo.
E ela ficou encantada, aceitou o marido como um deus, e partiu com êle para um país distante. Aí, à beira de um tanque, numa cidade distante, deixou o príncipe tomando conta da casa enquanto ia com as criadas comprar manteiga, azeite, arroz, sal, e outras provisões. Quando acabou as compras, voltou e encontrou o príncipe com a. cabeça em cima de um formigueiro. E de sua bôca saía a cabeça de uma cobra, tomando fresco. Ao mesmo tempo, outra cobra saiu se arrastando do formigueiro, também para se arejar.
Quando as duas se viram, os olhos de ambas ficaram vermelhos de raiva, e a cobra do formigueiro disse: - Miserável! Como podes; atormentar dêste jeito um príncipe que é tão belo? E a cobra na bôca do príncipe falou: - Miserável és tu! Como ousas sujar aquêles dois potes cheios de ouro? Desta forma cada qual pôs a descoberto a fraqueza da outra.
Então, a cobra do formigueiro continuou: - Infame! Será que ninguém conhece o remédio de beber mostarda preta e assim te exterminar? E a cobra da barriga do príncipe retorquiu: - E será que ninguém conhece o simples método de te matar com água fervendo?
Ora, a princesa, escondida atrás de um galho, ouviu a conversa, e fêz o que elas sugeriam. E assim conseguiu que o marido recuperasse a saúde, e enriqueceu. Quando voltou para sua terra, foi coberta de honrarias pelo pai, mãe e parentes, e viveu muito feliz. Pois tinha o que merecia.
E é por isto que eu digo:
Sempre pronto à defesa mútua.
Ajuda quem te ajudar;
Ou perecerás como a cobra do formigueiro
E como a cobra da barriga.
O Marido Crédulo
Havia outrora um carpinteiro em certa aldeia. Sua mulher era uma devassa e tinha fama disso. E assim, êle, querendo experimentá-Ia, pensou: - Como posso pô-la à prova? Pois diz o provérbio:
O fogo esfria, os velhacos abençoam, o luar queima antes de uma mulher se tornar virtuosa.
Ora, eu sei pela voz do povo que ela é infiel. Pois diz o ditado:
Tôdas as coisas que não são vistas nem ouvidas
Na ciência ou na Palavra Sagrada
Tudo o que há no espaço das estrelas
É conhecido no populacho.
Depois dessas reflexões, disse à mulher: - Amanhã de manhã, minha cara, vou a outra aldeia, onde ficarei por muitos dias. Por favor, prepara-me um bom almôço. E, ouvindo isto, o coração dela estremeceu; ela impacientemente deixou tudo para fazer pratos deliciosos, consistindo quase só em manteiga e açúcar. De fato, justificava-se o velho rifão:
Quando nuvens baixas
Escurecem o dia
Quando as ruas estão enlameadas
De barro pegajoso
Quando os maridos se demoram
Longe de casa,
O namoro se torna
Muitíssimo agradável.
Ora, de madrugada o carpinteiro levantou-se e saiu de casa. Quando ela se certificou de que êle tinha partido, com semblante alegre, passou o longo dia experimentando suas melhores roupas. Depois foi visitar um velho amante e disse: - Meu marido foi para outra aldeia - o tratante. Por favor, quando todos estiverem dormindo, vem a nossa casa. - E êle foi. Ora, o carpinteiro passou o dia na floresta, entrou furtivamente em casa à tardinha, por uma entrada lateral, e escondeu-se debaixo da cama. Nesse meio tempo, chegou o outro e meteu-se na cama. E quando o carpinteiro o viu, sentiu o coração vibrando de cólera, e pensou: - Devo levantar-me e castigá-lo? Ou será melhor esperar até que estejam dormindo e matá-los sem esfôrço? Ou ainda, será melhor esperar para ver como ela se comporta, ouvir o que ela lhe diz? Nesse momento, ela mansamente fechou a porta e foi para a cama.
Mas ao fazê-lo, bateu com o dedão do pé no corpo do carpinteiro. E pensou: - Deve ser o carpinteiro - o tratante - que está me experimentando. Bom, eu lhe mostrarei a lábia de uma mulher.
Enquanto estava pensando, o amante tornou-se insistente. Mas ela cruzou as mãos e disse: - Caro e honrado senhor, não deve tocar-me. E disse êle: - Ora bem! Porque então me convidaste?
- Ouça, disse ela. Esta manhã fui ao templo de Gauri, ver a deusa. Ali, de repente, ouvi uma voz do céu que dizia: - Que devo fazer, minha filha? És dedicada a mim, e no entanto, dentro de seis meses, por decreto do destino, ficarás viúva. Eu disse então: - Ó abençoada deusa, já que sabes da calamidade, também conheces o remédio. Haverá algum meio de fazer meu marido viver cem anos? E a deusa respondeu: - Na verdade há - um remédio que depende só de ti. Naturalmente eu disse: - Mesmo que me custe a vida, por favor, dize-me, que eu o farei. Ao que disse a deusa: - Se te deitares com outro homem e te entregares a êle, então a morte prematura, que ameaça teu marido, passará para êle. E teu marido viverá outros cem anos. Agora fazes o que tinhas em mente. As palavras da deusa não podem ser falsas - isto é certo. - Então o rosto do amante desabrochou num riso silencioso, e êle fêz o que ela lhe dizia.
Ora, o carpinteiro, insensato que era, ouvindo essas palavras. sentiu o corpo estremecer de alegria, e saiu de baixo da cama dizendo : - Bravo mulher fiel! Bravo, alegria da família! Porque meu coração estava perturbado pelos mexericos de criaturas más, fingi uma viagem a outra aldeia, a fim de experimentar-te, e fiquei escondido debaixo da cama. Agora vem e abraça-me.
Assim dizendo êle abraçou-a e pô-la sôbre os ombros, depois disse ao sujeito: - Meu caro e honrado senhor, o senhor veio aqui porque minhas boas ações mereceram esta felicidade. Por seu intermédio eu consegui cem anos de vila. O senhor também tem que trepar no meu ombro.
E assim forçou o camarada, muito contra sua vontade, a subir no seu ombro, e foi dançando pela porta das casas de todos os parentes.
E eis porque eu digo:
É completa falta de senso
Perdoar a ofensa evidente;
O carpinteiro carregou nos ombros
A mulher e aquêle que lhe desonrara o lar.
O Brâmane cego pela manteiga
Havia outrora, em certa cidade, um Brâmane chamado “Luz d’ouro”. Sua mulher, sendo impudica, e perseguidora de outros homens, estava sempre fazendo bolos com açúcar e manteiga para um amante, assim enganando o marido.
Ora, um dia o marido viu-a e disse: - Minha cara mulher que estás cozinhando? E para onde estás sempre levando bolos? Diz-me a verdade.
Mas seu descaramento foi adequado à situação e ela mentiu ao marido: - Existe um templo de uma abençoada deusa, não muita distante daqui. Ali empreendi uma cerimônia de jejum, e levo uma oferenda, incluindo os pratos mais deliciosos. Então, bem diante dêle, ela apanhou os bolos e pôs-se a caminho do templo da deusa, imaginando que, depois de sua declaração, o marido supusesse que era para a deusa que a mulher diariamente preparava pratos deliciosos. Tendo chegado ao templo, dirigiu-se ao rio, para cumprir o banho ritual.
Enquanto isto, o marido chegou por outro caminho e escondeu-se atrás da estátua da deusa. E a mulher penetrou no templo depois do banho, cumpriu os diversos ritos, - lavando, ungindo, incensando, fazendo uma oferenda, e assim por diante - inclinou-se diante da deusa e rezou: - ó deusa abençoada, como poderei tornar meu marido cego?
Então o Brâmane atrás da deusa falou, disfarçando a voz: - Se você só lhe der comidas com manteiga, e bolinhos de manteiga, êle acabará ficando cego.
Ora, essa dissoluta mulher, enganada pela plausível revelação, dava ao Brâmane só essa espécie de comida todos os dias. Um dia disse o Brâmane: - Minha cara, eu não estou vendo bem. E ela pensou: - Graças à deusa.
Então o amante favorito pensou: O Brâmane está cego. Que poderá fazer-me? E passou a freqüentar diariamente a casa, sem hesitação.
Mas afinal o Brâmane apanhou-o quando entrava, agarrou-o pelo cabelo; e deu-lhe tanta pancada e tantos pontapés que êle morreu. Ele também cortou o nariz da perversa mulher e mandou-a embora.
O Brâmane, o Ladrão e o Fantasma
Havia outrora em certa região um pobre Brâmane. Vivia de presentes, e privava-se sempre de luxos, como roupas finas, ungüentos, perfumes, jóias e goma de betel. Sua barba e suas unhas eram compridas, como também era o cabelo que lhe cobria a cabeça e o corpo. O calor, o frio, a chuva, e outras coisas semelhantes tinham-no ressecado.
Então alguém compadeceu-se dêle e deu-lhe duas novilhas. E o Brâmane, desde que elas eram pequenas sustentou-as com manteiga, azeite, forragem e outras coisas que mendigava.- De modo que elas ficaram muito gordas.
Então um ladrão viu-as e teve logo uma idéia: - Eu roubarei estas duas vacas do Brâmane. De forma que apanhou uma corda, e à noite encaminhou-se para lá. Mas no caminho encontrou um homem com uma fila de dentes muito separados um do outro, com um nariz encorcovado, e olhos desiguais, com os membros cobertos de nodosos músculos, faces encurvadas, e uma barba e corpo amarelos como manteiga queimando no fogo.
E quando o ladrão o viu, estremeceu com intenso mêdo e disse:
- Quem é o senhor?
O outro respondeu: - Sou um fantasma chamado Verdadeiro. Agora, é sua vez de se explicar.
Disse o ladrão: - Sou um ladrão e cometo ações cruéis. Vou agora roubar duas vacas de um pobre Brâmane.
Então o fantasma sentiu-se aliviado e disse: - Meu caro senhor, eu só como de três em três dias. Então hoje comerei êste Brâmane. É um prazer verificar que os nossos objetivos coincidem.
E êles lá se foram juntos e se esconderam, aguardando o momento oportuno. E quando o Brâmane adormeceu, o fantasma precipitou-se para comê-lo. Mas o ladrão viu-o e disse: - Meu caro senhor, isto não está certo. O senhor não pode comer o Brâmane enquanto eu não roubar as suas vacas.
O fantasma disse: - O barulho provavelmente despertaria o Brâmane. Nesse caso todo o meu trabalho teria sido em vão.
- Mas, por outro lado, disse o ladrão, se houver algum empecilho quando o senhor começar a comê-lo, eu também não poderei furtar as vacas. Antes eu roubarei as duas vacas, depois o senhor pode comer o Brâmane.
E assim brigaram, ambos gritando: - Primeiro eu! Primeiro eu! E quando se exaltaram a algazarra acordou o Brâmane. Então o ladrão disse: - Brâmane, êste é um fantasma que quer devorá-lo. E disse o fantasma: - Brâmane, êste é um ladrão que quer roubar suas duas vacas.
Ouvindo isto o Brâmane levantou-se e olhou bem. E lembrando-se de uma oração a seu deus favorito salvou a vida, ameaçada pelo fantasma, depois levantou um cacete e livrou suas duas vacas do ladrão.
E eis porque digo:
Esperai alívio dos inimigos
Se a discórdia os dividir;
Assim, a vida foi dada pelo ladrão
E o gado pelo fantasma.
O Mangusto leal
Havia uma vez um Brâmane chamado “Crente”, numa certa cidade. Sua mulher criava um único filho e um mangusto. E como gostava dos pequeninos, cuidava também do mangusto como de um filho, dando-lhe leite do seu seio, remédios e banhos, e assim por diante. Mas não tinha confiança nêle, porque pensava - o mangusto é uma criatura ruim. Poderia fazer mal a meu filho.
Um dia ela aconchegou o filho na cama, apanhou uma bilha d’água e disse aa marido: - Olha, professor, eu vou buscar água. Você precisa proteger o menino contra o mangusto. Mas depois dela ter saído, o Brâmane também saiu para mendigar comida, deixando a casa vazia.
Enquanto êste estava fora, uma cobra prêta saiu de seu buraco, e de acôrdo com o destino, esgueirou-se para o berço do bebê
Mas o Mangusto, sentindo nela um inimigo natural, e temendo pela vida de seu irmãozinho, caiu sôbre a malvada serpente, lutou com ela, fê-la em pedaços, e atirou-os longe. Então, encantado com seu heroísmo, correu, com o sangue ainda a escorrer-lhe da bôca, ao encontro da mãe, porque queria mostrar o que fizera.
Mas, quando a mãe o viu chegando, viu sua boca ensangüentada em seu nervosismo, pensou que o miserável tivesse comido seu filhinho, e sem refletir, raivosamente atirou a bilha d’água em cima dêle, matando-o instantaneamente. Lá o abandonou sem mais delongas, e apressou-se em voltar para casa, onde encontrou bebê são e salvo, e junto ao berço uma enorme cobra prêta em pedaços. Então, abismada de dor, porque matara irrefletidamente o seu benfeitor, seu filho, pôs-se a bater na cabeça e no peito
Nesse momento chegou o Brâmane com uma travessa de caldo de arroz, que conseguira de alguém nas suas voltas de pedinte, e viu a mulher amargamente lamentando o filho, o pobre mangusto: - Ambicioso! Ambicioso! gritou ela. Porque você não fêz o que eu lhe disse, tem agora que sofrer a amargura da morte de um filho, o fruto da árvore da sua maldade Sim, isto é o que acontece aos que se deixam cegar pela voracidade.
Os Ratos que libertaram os Elefantes
Havia outrora uma região onde o povo, as casas e os tempIos tinham caído em ruínas. Por isto os ratos, que eram Iá velhos colonos, ocuparam as fendas no soalho dos majestosos palácios com filhos, netos (tanto do lado masculino como feminino) e outros descendentes, à medida que nasciam, até que os buracos vieram formar uma densa confusão. Sentiam-se extraordinariamente felizes, num nunca acabar de festas, representações dramáticas (com enrêdos de sua invenção) bôdas, banquetes, bebedeiras, e diversões semelhantes. E assim passava o tempo.
Mas neste ambiente surgiu um elefante-rei, cuja comitiva elevava-se a milhares. Ele, com seu bando, tinha-se encaminhado para o lago, tendo tido a informação de que lá havia água. Ao passar pela comunidade dos ratos, esmagou rostos, olhos, cabeças e pescoços de todos os ratos que encontrou.
Então os sobreviventes organizaram uma assembléia. - Estamos sendo mortos, disseram, por êsses pesados elefantes - malditos sejam! Se passarem novamente por aqui não restará um só rato para semente. Portanto, estudemos um remédio eficaz nesta crise.
Depois de terem estudado o caso, certo número dêles foi até o lago, inclinaram-se diante do elefante-rei e disseram, respeitosamente: - Ó Rei, não longe daqui está nossa comunidade, que herdamos de uma longa linhagem de antepassados. Ali temos prosperado através de longa sucessão de filhos e netos. Ora, os senhores, enquanto se dirigiam para beber, nos exterminaram aos milhares. Além disso, se passarem novamente por lá, não restará um só de nós para semente. Porquanto, se se compadecerem de nós, passem por outro caminho. Considerem o fato que, mesmo criaturas de nosso tamanho, podem um dia ser de alguma utilidade.
E o elefante-rei refletiu no que ouvira, achou que a exposição dos ratos era profundamente lógica, e concedeu o que êles pediam.
Ora, no fim de algum tempo, um certo rei comandou seus caçadores para pegar elefantes. E êles construíram uma espécie de armadilha d’água, apanharam o elefante-rei com seu bando, três dias depois tiraram-no com um grande guindaste feito de cordas e outras coisas, e amararam-no a uma forte árvore naquela parte da floresta.
Depois dêles terem partido, o elefante-rei refletiu assim: - Como e com o auxílio de quem conseguirei livrar-me? Então lembrou-se: - Não temos outro meio de nos livrarmos, senão os ratos.
Então o rei enviou aos ratos uma descrição exata de sua desastrosa posição na armadilha, através de uma pessoa de seu séquito particular, uma elefanta que não se tinha aventurado na armadilha e que tivera informação prévia da comunidade dos ratos.
Quando os ratos souberam da notícia, reuniram-se aos milhares, impacientes por pagar o favor que lhes fôra feito, e visitaram, o bando de elefantes. E vendo o rei e o bando acorrentados, roeram as ligas que os amarravam, depois subiram pelos ramos, e cortando as cordas de cima, liberaram seus amigos.
E eis porque digo:
Façam amigos, façam amigos, sejam êles
Fortes ou fracos.
Lembrem-se dos elefantes cativos
Que os ratos libertaram.
O Asno na pele de Tigre
Havia outrora, em certa cidade, um tintureiro chamado Pano-Limpo. Ele só tinha um burro, que ficara muito enfraquecido por falta de forragem.
Quando o tintureiro vagava pela floresta, viu um tigre morto e pensou: - Ah! isto é uma sorte. Eu porei a pele do tigre em cima do burro e o soltarei à noite nos campos de cevada. Pois os fazendeiros tomá-lo-ão por um tigre e não o enxotarão.
Tendo feito isto, o burro comeu cevada à farta. E de madrugada o tintureiro levou-o de volta para o celeiro. Assim com o decorrer do tempo, êle engordou. Quase não entrava na estrebaria.
Mas um dia o burro ouviu ao longe o zurro da jumenta. A êsse simples som êle também começou a zurrar. Então os fazendeiros perceberam que êle era um burro disfarçado, e mataram-no a golpes de cacete, pedradas e flechadas.
E eis porque eu digo:
Por mais hábil que seja o disfarce,
Por mais tremendo que seja à vista,
Mesmo vestido com pele de tigre
O burro foi morto - porque zurrou.
A Mulher do Fazendeiro
Uma vez um fazendeiro que vivia com a mulher em certa região. E porque o marido fôsse velho, a mulher estava sempre pensando em amantes, e não encontrava satisfação em casa. Só pensava em outros homens.
Ora, um vagabundo, que vivia de gatunagens, reparou nela e disse: - Ó linda criatura, minha mulher morreu e ao ver-te fiquei abrasado de paixão. Por favor, brinda-me com o perfeito tesouro do amor.
E ela retrucou: - Ó homem encantador, se é isto que sentes, meu marido tem muito dinheiro, e está tão velho que nem se pode mexer. Eu arranjarei as coisas de modo a poder ir para algum lugar contigo, gozar as delícias do amor.
- É o que me convém, replicou êle. E se viesses até aqui de madrugada? Juntos poderíamos ir para alguma fascinante cidade, onde a vida nos conceda seus frutos perfeitos. - Muito bem, concordou ela e foi para casa, tôda risonha.
- Então, à noite, enquanto o marido dormia, ela apanhou todo o dinheiro e chegou ao ponto de encontro ao amanhecer. O vagabundo, por seu lado, colocou-a adiante, rumou para o sul, e viajou duas léguas, gozando alegremente as delícias da conversa com ela. Mas quando viu um rio à frente, refletiu: - Que vou fazer com esta mulher já madura? Além disso, talvez alguém a persiga. Vou apenas tomar-lhe o dinheiro, e depois dou o fora.
Disse-lhe então: - Minha cara, êste rio é muito largo, é difícil de atravessar. Eu vou só apanhar o dinheiro e colocá-lo a salvo do outro lado, depois voltarei para levar-te nas costas e transportar-te assim comodamente. - Isto mesmo, meu bem-amado, disse ela.
Assim, êle apanhou o dinheiro, até o último vintém, e depois disse: - Querida, dá-me teu vestido e teu agasalho, a fim de poderes passar pela água sem dificuldade. E depois dela ter feito isto, o maroto levou o dinheiro e as vestimentas e foi para o lugar que tinha em mira.
Então a mulher do fazendeiro ficou sentada na margem do rio, vencida pela dor, cravando as mãos no pescoço. Nesse momento um chacal aproximou-se, carregando um pedaço de carne. Ao chegar perto e olhar em tôrno, um grande peixe saltou da água e veio dar na margem. Avistando-o o chacal largou a carne e atirou-se sôbre o peixe. A vista disto, um abutre precipitou-se do céu e saiu voando com a carne. E o peixe, percebendo o chacal, fez um esfôrço e entrou no rio. Assim o chacal perdeu o seu tempo, e enquanto êle contemplava o abutre, a mulher nua sorriu e disse:
- Pobre chacal!
Tua carne foi comida pelo abutre,
Teu peixe tragado pela água;
Sem peixe e sem carne
Que mais queres?
E o chacal percebendo que a mulher estava igualmente abandonada, tendo perdido o dinheiro do marido e o amante, disse sarcástico:
- Oh mulher nua!
Parece que tua sagacidade
É duas vêzes maior do que a minha:
Tendo perdido marido e amante
Sentas à beira do rio.
O Sonho do Brâmane
Em certa cidade vivia um Brâmane chamado Rabugento, que mendigando conseguiu farinha de cevada, comia parte dela, e enchia uma vasilha com o restante. Uma noite êle pendurou a vasilha numa cravelha, colocou a cama ao lado, e fixando o olhar na vasilha caiu num devaneio hipnótico.
- Bem, aqui está uma vasilha cheia de farinha de cevada, pensou êle. Ora, se vier a carestia, obterei por ela cem rúpias. Com êste dinheiro comprarei duas cabras. De seis em seis meses elas terão outras duas cabritas. Depois das cabras, terei vacas. Quando as vacas parirem, venderei as novilhas. Depois de vacas, búfalos; depois dos búfalos, éguas. Das éguas conseguirei muitos cavalos. A venda dêstes representará muito ouro. O ouro comprará uma grande casa, com um pátio interno. Aí virá alguém e me oferecerá sua linda filha com um bom dote. Ela terá um filho que eu chamarei Senhor-da-Lua. Quando êle estiver bastante crescido para subir no meu joelho, apanharei um livro, sentar-me-ei no telhado da cavalariça e por-me-ei a pensar. Então Senhor-da-Lua me verá, pulará do colo da mãe na sua impaciência em subir nos meus joelhos, e chegará perto demais dos cavalos. Então eu me zangarei e direi à minha mulher para levar o menino. Mas ela estará ocupada com seus trabalhos e não prestará atenção ao que eu disser. Então eu me levantarei e lhe darei um pontapé.
Estando mergulhado no seu sonho hipnótico, êle deu tal pontapé, que espatifou a vasilha. E a farinha de cevada que ela continha tornou-o branco da cabeça aos pés.
Pescoço cascudo, magrela e feioso
Em certo lago vivia uma tartaruga chamada Pescoço Cascudo. Ela tinha por amigos dois gansos cujos nomes eram Magrela e Feioso. Ora, nas vicissitudes do tempo veio uma sêca de doze anos, que fêz com que os gansos concebessem idéias desta espécie: - este lago secou. Procuraremos outra zona. No entanto, primeiro precisamos dizer adeus a Pescoço Cascudo, nossa amiga tão querida e fiel.
Depois de terem feito isto, disse a tartaruga: - Por quê me dizem adeus? Eu sou uma habitante das águas, e aqui pereceria rapidamente em vista da escassez de água e pela tristeza de perdê-los. Portanto, se me têm alguma amizade, por favor, salvem-me das garras da morte. Além disso, enquanto a água seca neste lago, vocês não sofrem senão uma dieta restrita, enquanto para mim isso significa a morte imediata. Pensem no que é mais perigoso, perda de comida ou perda de vida.
Mas êles replicaram: - Não podemos levá-la, pois você é uma habitante das águas mas sem asas. No entanto a tartaruga continuou: - Há um meio. Tragam um pedaço de pau. Eles assim o fizeram, à vista do que a tartaruga agarrou a metade do pau entre os dentes e disse: - Agora segurem firmemente com os bicos, um de cada lado, voem, e prossigam num vôo igual através do céu, até descobrirmos outra extensão de água conveniente.
Mas êles objetaram: - Há um obstáculo neste belo plano. Se você se puser a conversar, nem que seja um segundo, perderá seu ponto de apoio, cairá de grande altura e ficará em pedaços.
- Oh, disse a tartaruga, dêste momento em diante faço um voto de silêncio que deverá durar enquanto estivermos no ar. Então êles executaram o plano, mas enquanto os dois gansos estavam laboriosamente carregando a tartaruga sôbre uma cidade vizinha, o povo em baixo observou o espetáculo, e levantou-se um confuso murmúrio de conversa, enquanto êles perguntavam: - Que será aquêle objeto feito uma carroça, que aquêles dois pássaros estão carregando nos ares?
Ouvindo isto, a infeliz tartaruga foi bastante imprudente para perguntar: - Que é que essa gente está dizendo? No instante que falou, a pobre simplória perdeu o apoio e precipitou-se ao solo. E as pessoas que queriam carne cortaram-na em pedaços num instante com afiadas facas.
in LIN Yutang, Sabedoria de Índia e China, 1958.