Quando o guerreiro Arjuna está quase se empenhando em
batalha final contra seus inimigos, os Kauravas, é tomado pelo
mêdo à possibilidade de ter de derramar sangue. Consulta en-
tão seu companheiro no carro de guerra, que é Krishna e êste
lhe retira a hesitação - Arjuna deve Cumprir seu dever como
guerreiro. Além disso, diz-lhe Krishna, a vida e a morte são de
pouco valor quando comparadas aos valôres eternos. É assim
que começa o poema famoso, A Canção Celestial.
Revelando-se gradualmente a Arjuna como sendo o Ser
Supremo, Krishna ensina a ação sem desejo, que leva o ser huma-
no à Libertação.
Talvez êsse poema estivesse ligado ao Épico, o Maha-Bha-
rata, sendo de data indefinida, talvez contemporâneo ao início
da era cristã. O Bhagavad-gita foi corretamente chamado o
Evangelho do Krishnaísmo.
I. O Sábio Diante da Morte
Krishna Censura e Exorta à Bravura
Disse o recitador:
A Arjuna, dominado pela piedade, cujos olhos estavam cheios de
lágrimas e se mostrava perturbado e muito deprimido, Krishna falou.
O Senhor Bendito disse:
De onde te veio esse abatimento de espírito nesta hora de crise?
Ele é desconhecido dos homens de mente nobre, não leva ao céu, e
sôbre a terra causa desgraça, Ó Arjuna.
Não cedas a essa fraqueza, Ó Arjuna, pois ela não condiz contigo.
Lança fora essa debilidade do coração e desperta, Ó Opressor dos
inimigos.
As Dúvidas de Arjuna o Atormentam
Disse Arjuna:
Como poderei abater Bhisma e Drona que merecem adoração, Ó
Krishna, com minhas setas na batalha, Ó Chacinador de inimigos?
É melhor viver neste mundo pedindo esmolas do que matar esses
mestres meritórios. Embora eles cuidem de seus ganhos, são meus
mestres, e matando-os eu apenas desfrutaria neste mundo prazeres sal-
picados de sangue.
Nem tampouco sabemos o que é melhor para nós, vencê-los ou
sermos vencidos por eles. Os filhos de Dhritarastra, que se matarmos
não teremos prazer em viver, estão diante de nós em formação de
batalha.
O meu próprio ser está tomado pela fraqueza da piedade. Com
meu espírito confuso sobre o meu dever, peço-te que me digas o que
é melhor. Sou teu discípulo; ensina a mim, que busco refúgio em ti.
Não vejo o que expulsará esta tristeza que resseca meus sentidos,
mesmo que venha a conseguir um reinado rico e sem rival sobre a
terra ou mesmo a soberania dos deuses.
Disse o recitador:
Tendo se dirigido assim à Krishna, o poderoso Arjuna lhe disse
ainda: "Não lutarei” e silenciou.
Àquele que se achava deprimido assim em meio a dois exércitos,
Ó Bharata, Krishna falou sorrindo.
Não Nos Devemos Lamentar Pelo Imperecível.
O Senhor Bendito disse:
Tu lamentas aqueles que não deverias lamentar, e no entanto
dizes palavras sobre a sabedoria. Os homens sábios não se lamentam
pelos mortos ou pelos vivos.
Nunca houve uma época em que eu não existisse, ou tu, ou esses
senhores dos homens, nem tampouco virá uma época no futuro em que
deixaremos de existir.
Assim como a alma vem ter a este corpo através da infância, mo-
cidade e madureza, do mesmo modo ela toma outro corpo. O sábio
não fica perplexo com isso.
Os contatos com seus objetos, Ó filho de Kunti, dão origem ao
calor e frio, prazer e dor.
Eles vêm e vão e não duram para sempre, aprendem a resistir,
Ó Arjuna.
Ó homem que não se perturba com isso, Ó Chefe de homens, que
continua o mesmo na dor e no prazer e é sábio, torna se capacitado
para a vida eterna.
Do não-existente não há vir-a-ser; do existente não há deixar de ser.
A conclusão para os dois casos já foi percebida pelos que buscam
a verdade.
Sabes tu que aquilo pelo qual tudo se acha impregnado é indes-
trutível. Desse ser imutável ninguém pode causar a destruição.
Diz-se que esses corpos da alma eterna que é indestrutível e in-
compreensível chegam a um fim. Por isso, luta, Ó Arjuna.
Aquele que pensa que isto mata, e aquilo é morto, deixa de
perceber a verdade, pois nem se mata nem se é morto.
Ele nunca nasce, nem tampouco morre em qualquer ocasião, nem
ainda tendo passado a ser uma vez, cessa de ser. Ele não nasce, é
eterno, permanente e primevo. Ele não é morto quando o corpo é
abatido.
Quem sabe ser ele indestrutível e eterno, incriado e imutável, como
poderá abater alguém, Ó Arjuna, ou fazer alguém abater outrem?
Assim como uma pessoa deita fora roupas usadas e põe outras
novas, a alma deita fora corpos usados e toma outros que são novos.
As armas não ferem esse eu, o fogo não o queima, as águas não
o molham, nem o vento o faz secar.
Ele é indivisível, Ele não pode ser queimado, nem tampouco mo-
lhado ou secado. Ele é eterno, presente em tudo, imutável e imóvel.
Ele é o mesmo para sempre.
Diz-se que é imanifesto, inimaginável e imutável. Portanto, ca-
nhecendo-o como tal, tu não deves lamentar.
Não Nos Devemos Lamentar Pelo Perecível
Mesmo que tu penses que o eu nasce e morre perpetuamente, ain-
da assim, Ó Poderoso, não deves lamentar.
Pois para quem nasce, a morte é certa e certo é o nascimento para
quem morreu. Pelo que é inevitável, portanto, não te deves lamentar.
Os seres são imanifestos em seus inícios, manifestos no meio e
novamente imanifestos em seus fins. Ó Arjuna, que existe nisto para
lamentar?
Há quem O veja como uma maravilha, outro fala d'Ele como uma
maravilha, outro ouve falar d'Ele como uma maravilha, e mesmo de-
pois de ouvir, ninguém O conheceu.
O morador no corpo de todos, Ó Arjuna, é eterno e jamais pode
ser morto; portanto, não te deves lamentar por criatura alguma.
As Características do Sábio Perfeito
Disse Arjuna:
Qual é a descrição do homem que possui essa sabedoria firme-
mente fundada, cujo ser é firme em espírito, Ó Krishna? Como fala
o homem de inteligência estabelecida, como se senta, como anda?
O Senhor Bendito disse:
Quando um homem põe de lado todos os desejos de sua mente, Ó
Arjuna, e quando seu espírito está contente em si próprio, então se chama
estável em inteligência.
Aquele cuja mente não se perturba em meio às tristezas e está
livre do desejo ansioso entre prazeres, aquele de quem a paixão, medo
e raiva se afastaram, a êste se chama um sábio de inteligência es-
tabelecida.
Aquele que não tem afeição em qualquer lado, que não se reju-
bila ou detesta ao ter o bem ou o mal, tem uma inteligência firme-
mente estabelecida na sabedoria.
Aquele que retira os sentidos dos objetos do sentido em todos os
lados, assim como uma tartaruga recolhe seus membros ao casco, tem
uma inteligência firmemente estabelecida na sabedoria.
Os objetos do sentido se afastam da alma corporificada que se
abstém de alimentar-se dêles, mas o gosto por eles continua. Até
mesmo o gosto se afasta quando o Supremo é visto.
Embora um homem possa esforçar-se pela perfeição e mostrar-se
dono de discernimento, Ó Filho de Kunti, seus sentidos impetuosos ar-
rastarão sua mente à força.
Tendo posto todos os sentidos sob controle, ele deve permanecer
firme no intento Yoga em Mim, pois aquele cujos sentidos se acham
sob controle teia uma inteligência firmemente estabelecida.
Quando, em sua mente, um homem presta atenção aos objetos do
sentido, produz-se sua ligação aos mesmos.
Dessa ligação surge o desejo, e do desejo vem a raiva.
Da raiva nasce a confusão, e desta a perda de memória; dessa
perda de memória vem a destruição da inteligência e desta ele perece.
Um homem de mente disciplinada, no entanto, que se move entre
os objetos de sentido com os sentidos sob controle e livre de ligação
e aversão, atinge a pureza de espírito.
E nessa pureza de espírito produz-se para ele um fim de toda
tristeza; a inteligência de um homem de espírito puro assim logo se
estabelece na paz do eu.
Não existe inteligência para os incontrolados, nem tampouco para
os incontrolados existe o poder de concentração, enquanto para aquele
que não tem concentração não há paz, e como pode haver felicidade
para quem não tem paz?
Quando a mente persegue .os sentidos nômades, leva consigo a
compreensão, assim como o vento impele um navio sobre as águas.
Aquele cujos sentidos estejam retirados de seus objetos, portanto,
Ó Poderoso, tem sua inteligência firmemente estabelecida.
O que é noite para todos os seres é o momento de despertar para
a alma disciplinada, e o que é momento de despertar para todos os
seres é a noite para o sábio que vê.
Aquele em quem todos os desejos entram como águas no mar e
que, embora sendo sempre enchido, está sempre em movimento, atin-
ge a paz e não Aquele que se abraça a seus desejos.
Aquele que abandona todos os desejos e age livremente da sau-
dade ou desejo, sem qualquer sentido de propriedade egoísta ou egoís-
mo, atinge a paz.
Esse é o estado divino, Ó Arjuna, onde tendo chegado não há
mais confusão e fixo nesse estado, na hora da morte, pode-se alcan-
çar a ventura de Deus. (11)
(2 . 1-30, 54-72 )
2. Krishna Se Manifesta em Sua Glória
Com muitas bocas e olhos,
Muitos aspectos prodigiosos,
Muitos ornamentos maravilhosos,
Com armas maravilhosas e erguidas;
Trajando grinaldas e roupas maravilhosas,
Com perfumes e ungüentos maravilhosos,
Feito de todas as maravilhas, o deus,
Infinito, com faces em todas as direções.
De mil sóis no céu,
Se, repentinamente irrompesse
A luz, seria como
A luz daquele celebrado.
Arjuna disse:
Vejo os deuses em teu corpo, ó Deus,
Todos, e as hostes de diversos tipos de seres também,
O Senhor Brama sentado no assento de lótus,
E os videntes todos, e as serpentes divinas.
Com muitos braços, barrigas, bocas e olhos,
Vejo-Te, infinito em forma de todos os lados;
Nenhum fim, ou meio, ou mesmo início de Ti
Eu posso ver, Ó Todo-Deus, Todo-formado!
Com diadema, bastão e disco,
Massa de radiação, brilhando em todos os lados,
Eu Te vejo, com dificuldade, em todos os lados
Com a glória do fogo e sol brilhante, imenso.
Tu és o Imperecível, o supremo Objeto de Conhecimento;
Tu és o lugar final de descanso deste universo;
Tu és o guardião imortal do direito eterno,
Tu és o Espírito sempiterno, eu afirmo.
Sem início, meio ou fim, de poder infinito,
De braços infinitos, olhos que são a lua e o sol,
Eu Te vejo, com face que é fogo radiante,
Queimando todo este universo com Tua radiação.
Pois esta região entre céu e terra
Esta impregnada por Ti apenas, em todas as direções;
Vendo esta Tua forma prodigiosa e terrível,
Treme o mundo triplo, Ó celebrado!
Homenagem a Ti vinda da frente e de trás,
Homenagem a Ti vinda de todos os lados, Tu que és Tudo!
Ó Tu de poder infinito, Tua bravura não se mede;
Tu atinges tudo, portanto és Tudo!
Tu és o pai do mundo de coisas que se movem e não se movem,
E Tu és seu Guru reverenciado e mais venerável;
Não há outro como Tu - como haveria então um maior? -
Mesmo nos três mundos, Ó Tu de grandeza sem par!
Inclinando-me e prostrando meu corpo, portanto,
Peço-Te graça, o Senhor a ser reverenciado:
Como um pai a seu filho, um amigo e seu amigo,
Um amante a seu amado, mostra misericórdia, Ó Deus!
Tendo visto o que nunca'antes foi visto, estou emocionado,
E ao mesmo tempo meu coração treme de medo;
Mostra"me, Ó Deus, aquela mesma forma Tua de antes!
Sé misericordioso, senhor dos Deuses, Morada do Mundo!
Usando o diadema, empunhando o bastão e com o disco na mão,
É assim que Te desejo ver como antes;
Naquela mesma forma de quatro braços
Apresenta-te, Ó dono de mil braços, de forma universal!
O Abençoado disse:
Esta forma bem difícil de ver,
E que viste de Mim,
Até mesmo os deuses
Desejam ver constantemente.
Nem pelos Vedas, ou pela austeridade,
Nem por presentes ou atos de adoração
Posso ser visto em tal apresentação,
Como aquela em que me viste.
Mas pela devoção completa posso
Eu, em tal apresentação, Arjuna,
Ser conhecido e visto na verdade,
E penetrado, arrasador do inimigo.
Executando Meu trabalho, atento a Mim,
Devotado a Mim, livre de ligações,
Livre da inimizade a todos os seres,
Quem assim estiver, virá a Mim, filho de Pandu.(12)
(11,10-12, 15-20, 40, 43-46, 52-55)
3. O Iogue Perfeito
Quando o pensamento, controlado,
Se estabelece no Eu apenas,
O homem livre de todos os desejos
Chama-se então disciplinado.
Como lâmpada colocada em lugar sem vento
Não tremula, esta imagem se grava
Do homem disciplinado controlado em pensamento,
Praticando a disciplina do Eu. .
Quando o pensamento entra em descanso,
Detido pela prática da disciplina,
E quando Eu pelo eu
Contemplando, ele encontra satisfação no Eu;
Aquela ventura superna que
Deve ser apreendida pela consciência e se acha além dos
sentidos,
Quando ele conhece isto, e de modo algum
Se desvia da verdade, morando sempre nela;
E que tendo ganho, outro ganho
Ele não tem como maior do que ela;
Em que estabelecido, por miséria alguma,
Por mais lamentável, ele é tocado:
Esse estado, que ele saiba, - da conjunção com a miséria
A disjunção, - é conhecido como disciplina;
Com determinação deve ser praticada
Esta disciplina, com coração sem desânimo.
Os desejos surgidos dos propósitos
Abandonando, tudo sem deixar traços,
Com o órgão do pensamento apenas a pulsação dos sentidos
Restringindo de todo,
Pouco a pouco que entre em descanso
Através da consciência, mantida firmemente;
Mantendo o órgão do pensamento fixo no Eu,
Em mais nada ele deve pensar.
Sempre que qualquer coisa desvie
O órgão do pensamento, inconstante e instável,
De qualquer coisa assim que o impeça,
Ele a trará para o controle no Eu apenas.
Para quem o órgão do pensamento estiver tranqüilo,
Ao disciplinado, ventura suprema
Se achega, sua paixão acalmada,
Se identificam a Brahman, sem jaça.
Disciplinando-se assim sempre,
O homem disciplinado, livre de jaça,
Para entrar facilmente em contato com Brahman
E atingir a ventura suprema, se esforça.
A si próprio como em todos os seres,
E todos os seres em si próprio,
Vê Aquele cujo Eu é disciplinado na disciplina,
Que vê o mesmo em todas as coisas.
Quem vê a Mim em tudo,
E vê tudo em Mim,
Para esse não estou perdido,
E não está perdido para Mim.
A Mim como estando em todos os seres que
Reverencia, adotando a crença na unidade,
A morada em qualquer condição possível,
Esse homem disciplinado mora em Mim.
Por comparação consigo próprio, em todos os seres
Que vê o mesmo, Arjuna,
Seja prazer ou seja dor,
Esse é considerado o homem disciplinado supremo. (12)
(Ibid., 6. 18-32 )
4. Esforça-te Pela Sabedoria
Falta de medo, unidade de alma, a vontade
Sempre de lutar pela sabedoria; mão aberta
E apetites controlados; e piedade
E amor pelo estudo solitário; humildade,
Correção, cuidado em ferir nada que vive,
Veracidade, lentidão na raiva, uma mente
Que deixa ir facilmente o que outros prezam;
E equanimidade, e caridade
Que não busca a falta de homem algum; e ternura
Para quem sofre; um coração contente,
Oscilando por desejo algum; mente tolerante,
Modesto e sério, masculinidade nobremente misturada
À paciência, fortaleza e pureza;
Um espírito sem vingança, jamais inclinado
A se situar alto demais; - sejam estes os sinais,
Ó Príncipe Indiano, daquele cujos pés estão firmes
Naquela trilha que leva ao nascimento celestial!
A falsidade e arrogância, o orgulho,
Facilidade no enraivecer, fala bruta e má,
E ignorância, cega à sua própria treva, -
Sejam estes os sinais, Meu Príncipe, daquele cujo nascimento
Está fadado às regiões do desprezível. (13)