O Maha-Bharata

A "Grande História da Guerra dos Bharatas" é um enor-
me poema épico de 90000 versos duplos, descrevendo a riva-
lidade impiedosa que separa as duas linhas de descendentes de
Bharata, os cem Kauravas de um lado e seus primos, os cinco
Pandavas, de outro. Os Pandavas vencem ao fim de uma carni-
ficina geral que leva afinal à sua própria morte (número 2
adiante).
A narração é interrompida aqui e ali por episódios a ela
relacionados, fábulas e apólogos, ou por dissertações políticas e
morais que transformaram esse enorme poema numa espécie de
resumo geral dos valores principais do hinduísmo, resumo, entre-
tanto, que dá mais espaço ao dharma do guerreiro do que ao de
um brâmane ou asceta.
Os autores do Maha-Bharata não podem ser individualiza-
dos e sua redação talvez esteja situada em uma época entre o
século II ou III antes de Cristo e o século I da era cristã.
Os números 3 e 4 adiante descrevem, respectivamente, as
opiniões de Draupadi, espôsa comum dos Pandavas, e de Yud-
histhira, o chefe dos Pandavas, acerca dos acontecimentos que
causaram seu infortúnio, e das lições que deveriam ser extraídas
dos mesmos.

l. Sobre a Origem e Valor das Quatro Castas

Brama criou assim anteriormente os Prajapatis bramânicos,(a) pene-
trados por sua própria energia e em esplendor igualando o sol e o fogo.
O senhor formou então a verdade, correção, fervor austero e os Vedas
eternos, a prática virtuosa e a pureza para se atingir o céu. Formou
também os deuses, demônios e homens, brâmanes, xátrias, vaixás e su-
dras, bem como todas as outras classes de seres. A cor dos brâmanes
era branca, a dos xátrias vermelha, a dos vaixás amarela e a dos su-
dras negra.
Se a casta das quatro classes for distinguida por sua cor, então se
mostra observável uma confusão de todas as castas. O desejo, a raiva,
o medo, a cupidez, a aflição, a apreensão, a fome, a fadiga, atingem-
"nos todos; pelo que se discrimina a casta, então? O suor, urina, ex-
cremento, fleuma, bílis e sangue são comuns a todos; todos têm cor-
pos que degeneram; pelo que se discrimina a casta, então? Há inúme-
ras espécies de coisas que se movem e são estacionárias; como se pode
determinar a classe desses diversos objetos?
Não há diferença de castas; tendo sido criado inteiramente brama-
nico de inicio por Brama, em seguida este mundo se separou em cas-
tas devido às obras. Aqueles brâmanes que gostavam o prazer sen-
sual, ferozes, irascíveis, inclinados à violência, que tinham abandonado
seu dever e apresentavam membros vermelhos, caíram na condição de
xátrias. Aqueles brâmanes que extraíam sua subsistência do gado, eram
amarelos, subsistiam pela agricultura e negligenciavam seus deveres
entraram no estado de vaixás. Aqueles brâmanes que gostavam da
maldade e falsidade, eram cobiçosos e viviam de todos os tipos de tra-
balho, eram negros e tinham abandonado a pureza, mergulharam na
condição de sudras. Estando separados uns dos outros por essas obras,
os brâmanes se dividiram em castas diferentes. O dever e os ritos de
sacrifício nem sempre foram proibidos a qualquer um deles. São estas
as quatro classes para quem o Sarasvati (b) bramânico foi destinado de
início por Brama, mas que, pela sua cupidez, caíram na ignorância. Os
brâmanes vivem de acordo com as prescrições dos Vedas, e enquanto
se atêm a eles e às observâncias e cerimônias, seu fervor austero não
desaparece. E a ciência sagrada foi criada como a coisa suprema -
aqueles que a ignoram não são homens nascidos duas vezes. Destes,
há diversas outras classes em lugares diferentes, que perderam todo o
conhecimento sagrado e profano e praticam quaisquer observâncias que
lhes agradem. E diferentes espécies de criaturas com os ritos purifi-
cadores de brâmanes, e discernindo os seus próprios deveres, são cria-
dos por Rishis (c) diferentes, através de seu próprio fervor austero. Esta
criação, nascida do deus primaz, tendo sua raiz em brahman, indegene-
rável, imperecível, chama-se a criação nascida da mente, estando devo-
tada às prescrições do dever.
Que é aquilo, em virtude do que um homem é um brâmane, um
xátria, um vaixá ou um sudra? Dize-me, ó eloqüentíssimo Rishi.
Aquele que é puro, consagrado às cerimônias natais e outras, que
estudou completamente os Vedas, vive na prática das seis cerimônias,
executa perfeitamente os ritos da purificação, come os restos das obla-
ções, prende-se a seu mestre religioso, é constante nas observâncias re-
ligiosas e devotado à verdade, chama-se um brâmane. Aquele em quem
se vêem a verdade, liberalidade, inofensividade, modéstia, compaixão
e fervor austero, é declarado um brâmane. Aquele que pratica o de-
ver advindo do cargo de rei, dedica-se ao estudo dos Vedas e tem pra-
zer em dar e receber, a este se chama um xátria. Aquele que pron-
tamente se ocupa com gado, é dedicado à agricultura e à aquisição e
se mostra perfeito no estudo dos Vedas, denomina-se um vaixa. Aque-
le que habitualmente se inclina a todos os tipos de alimento, executa
todos os tipos de trabalho, não é limpo, abandonou os Vedas e não
pratica as observâncias puras, é tradicionalmente chamado um sudra.
E isto que afirmei é a marca de um sudra, e não se encontra em um
brâmane; um sudra assim continuará a ser um sudra, enquanto o brâ-
mane que agir assim não será um brâmane. (14)

a) Deuses secundários, considerados como emanados de Brahman.
b) A deusa da palavra.
c) Videntes primitivos.

2. A Renúncia ao Seu Reino Pelos Cinco Filhos de Pandu
e Sua Jornada Para o Céu de Indra no Monte Meru

Quando os quatro irmãos souberam da alta decisão do rei Yudhisthira,
Juntamente com Draupadi (a) partiram, e depois deles um cachorro
Seguiu - o próprio rei saiu em sétimo lugar da cidade real,
E todos os cidadãos e mulheres do palácio foram andando atrás;
Mas ninguém conseguia de seu coração dizer ao rei: "Volta".
E assim, finalmente, a fila de cidadãos regressou, dando adeus.
Os filhos de Pandu, homens de pensamento elevado, e a nobre Draupadi
Continuaram à frente, jejuando, com seus rostos para o oriente; seus
corações
Desejando a união com o Infinito, querendo abandonar
As coisas mundanas. Peregrinaram a muitos paises e muitos mares
E rios. Yudhisthira marchava à frente, e após ele vinha Bhima.
Depois deste vinha Arjuna, e então, pela ordem, os irmãos gêmeos.
E por último vinha Draupadi, com sua pele escura e olhos de lótus -
A fiel Draupadi, a mais bela das mulheres, melhor das esposas nobres -
Atrás deles marchava a única coisa viva que partilhava sua peregrinação -
O cachorro - e por graus eles chegaram ao mar sulfuroso. Ali, Arjuna
Atirou às ondas seu arco e aljava. Então, com almas bem disciplinadas,
Chegaram à região setentrional, e contemplaram com corações aspi-
rantes ao céu
A poderosa montanha Himavant,(b) Além de seu pico elevado eles
passaram
Em direção a um mar de areia, e viram finalmente o monte Meru, rei
Das montanhas. Enquanto com passos ansiosos se apressavam, suas
almas visando
A união com o Eterno, Draupadi perdeu sua esperança elevada
E cambaleando caiu ao chão.

[Um por um caem os demais, também, até que apenas
Bhima, Yudhisthira e o cachorro restam.
É ainda Yudhisthira quem marcha firmemente à frente,
calmo e imperturbável, sem olhar para a direita ou esquerda e
fortalecendo sua alma em decisão inflexível. Bhima, chocado
com a queda de seus companheiros e incapaz de compreender
como seres aparentemente tão sem falsidade fossem abatidos pelo
destino, recorre ao irmão que, sem olhar para trás, explica que
a morte é a conseqüência de pensamentos pecaminosos e do
grande apego aos objetos mundanos; a queda de Draupadi foi
devida à sua afeição excessiva por Arjuna, a de Sahadeva (que
se supunha o mais humilde dos cinco irmãos) a seu orgulho por
seu próprio conhecimento, a de Nakula (muito belo) a senti-
mentos de vaidade pessoal, e a de Arjuna a uma confiança ar-
rogante em seu poder de destruir seus inimigos. Bhima sente-
-se cair então, sendo-lhe dito que êle sofre a morte por seu egoís-
mo, orgulho e amor demasiado aos prazeres.
O único sobrevivente agora é Yudhisthira, que ainda mar-
cha com firmeza à frente, acompanhado apenas pelo cachorro.]

Quando, com um som repentino que ecoou pela terra e céu, o deus
poderoso
Veio para ele numa carruagem e gritou: "Sobe, ó príncipe resoluto",
Foi que o rei olhou para trás por seus irmãos caídos, e dirigiu
Estas palavras ao de mil olhos em angústia - "Deixa meus irmãos
Virem comigo. Sem eles, Ó deus dos deuses, eu jamais desejaria entrar
Mesmo no céu; e mais além, a terna princesa Draupadi, a esposa fiel,
Digna de ventura eterna, deixa-a vir também. Por misericórdia, ouve
minha oração”.

[com isso, Indra o informa que os espíritos de Draupadi
e de seus irmãos já estão no céu e só a ele é permitido subir lá
em forma corporal. Yudhisthira estipula então que seu cachor-
ro possa ir com ele, ao que Indra responde severamente: "O
céu não tem lugar para homens acompanhados de cães", mas
Yudhisthira é inabalável em sua decisão e se recusa a abando-
nar o fiel animal. Indra se aborrece: "Tu abandonaste irmãos
e Draupadi; por que não o cachorro?" A isto, Yudhisthira res-
ponde altivamente: "Eu não tinha o poder de trazê-los de volta
à vida - como pode haver abandono daqueles que não vivem
mais?"]

Verifica-se que o cachorro é seu próprio pai Dharma (d) dis-
farçado. Retomando então sua forma própria, louva Yudhisthira
por sua constância e entram juntos no céu, onde para sua sur-
presa encontra Duryodhana (e) e seus primos, mas não seus irmãos
ou Draupadi. Com isso, ele declina continuar no céu sem eles
e um anjo é enviado para conduzi-lo às regiões mais baixas e
atravessando o Vaitarani (f) até o inferno, onde se supõe que estejam.
O inferno a que conduzem Yudhisthira é uma floresta fe-
chada, cujas folhas são espadas aguçadas e seu chão acha-se co-
berto de navalhas. O caminho que leva a ele acha-se coberto de
corpos mutilados e asquerosos. Formas nojentas atravessam o
ar e pairam sobre ele. Existe aqui uma sensação terrível de
treva palpável. Eis onde os maus se queimam nas chamas do
fogo ardente. De repente, ouve as vozes de seus irmãos e com-
panheiros implorando que alivie seus tormentos e não os aban-
done. Sua resolução está tomada. Afetado profundamente, pede
ao anjo que o deixe ali para partilhar as misérias dos outros. É
seu último julgamento e toda a cena desaparece, pois fora sim-
ples ilusão para comprovar sua constância ao máximo. Orde-
nam que se banhe no Ganges celestial, e tendo mergulhado na
corrente sagrada, entra no céu real onde por muito tempo, em
companhia de Draupadi e seus irmãos, encontra aquele descan-
so e felicidade inatingíveis na terra.] (15)
(17.24 ss.)

a) A esposa comum dos cinco irmãos, os Pandavas
(filhos de Pandu).
b) O Himalaia.
c) Deus Indra, rei do panteão antigo.
d) A lei personificada.
e) O chefe dos Kauravas.
f) O rio que corre entre a terra e regiões inferiores,
o Estige hindu.

3. A Tirania da Divindade

Ó monarca, levado por um sentido perverso durante aquela hora
de uma partida de dados, ainda assim apostaste e perdeste teu reina-
do, tua riqueza, tuas armas, teus irmãos e a mim próprio!
Simples, gentil, liberal, modesto, verdadeiro, como, ó Rei, pode
tua mente ser atraída para o vício do jogo? Estou quase privado de
meus sentidos, Ó Rei, e meu coração afogado em pesar, contemplando
tua situação e tua calamidade! Cita-se uma história antiga quanto à
verdade de que os homens estão sujeitos à vontade de Deus e jamais
a seus próprios desejos! O Senhor Supremo e Ordenador de tu o or-
denou todas as coisas quanto ao bem estar e desgraça, felicidade e mi-
séria, de todas as criaturas, mesmo antes de seu nascimento, guiado pe-
los atos de cada um, que são como uma semente destinada a brotar.
Ó herói entre os homens, assim como uma boneca de madeira move
seus membros porque são puxados por fios, do mesmo modo as criatu-
ras são postas a agir pelo Senhor de tudo. Ó Bharata, como o espaço
que cobre todos os objetos, Deus, impregnado em toda criatura, ordena
seu bem estar ou desgraça. Como um pássaro atado por um cordão,
toda criatura depende de Deus. Todos estão sujeitos a Deus e a nin-
guém mais. Ninguém pode ser o seu próprio ordenador. Como uma
pérola em seu cordão, ou um touro seguro pela corda que passa por
seu nariz, ou uma árvore caída da margem no meio da corrente, toda
criatura segue o comando do Criador, por imbuída de Seu Espírito e
por estabelecida n'Ele. E o próprio homem, dependente da Alma Uni-
versal, não pode ter um só momento independente.
Envoltas na treva, as criaturas não são senhoras de seu próprio
Bem estar ou desgraça. Elas vão para o céu ou inferno, levadas pelo
próprio Deus. Como palhas leves dependentes de ventos fortes, todas
as criaturas, Ó Bharata, dependem de Deus! E o próprio Deus, im-
pregnado em todas as criaturas e empenhado em atos certos e errados,
move-se no universo, embora ninguém possa dizer: "Isto é Deus". Éste
corpo com seus atributos físicos é apenas o meio pelo qual Deus faz
todas as criaturas, para colher frutos bons ou maus.
Contempla o poder de Ilusão que foi espalhado por Deus, que
confundindo com sua ilusão, faz as criaturas abater seus semelhantes
Os sábios conhecedores da verdade as contemplam de modo dife-
rente e elas lhes aparecem numa luz diversa, como os raios do Sol. Os
homens comum contemplam as coisas da terra de outro modo. É Deus
quem as faz todas, adotando processos diferentes em sua criação e
destruição.
E, Ó Yudhishthira, o Grão-Senhor Autocriado, Deus Todo-Podera-
so, espalhando a ilusão, abate suas criaturas pela instrumentalidade de
suas criaturas, assim como se pode partir um pedaço de madeira iner-
te e desprovida de sentidos com ma eira, ou pedra com pedra, ou fer-
ro com ferro! E o Senhor Supremo, conforme sua vontade, brinca com
suas criaturas, criando-as a destruindo-as, como uma criança faz com
seus brinquedos.
Ó Rei, parece-me certamente que Deus se comporta quanto às
suas criaturas como um pai ou mãe para elas. Como uma pessoa má,
Ele parece comportar-se com elas em raiva! Vendo pessoas superiores
e bem comportadas e modestas perseguidas, enquanto os pecadores es-
tão felizes, vejo-me seriamente perturbado!
Contemplando-te nesta dificuldade e a prosperidade de Suyodhana,
não falo elevadamente do Grande Ordenador que permite tal desigual-
dade! Ou, senhor, que frutos o Grande Ordenador colhe em dar pros-
peridade ao filho e Dhritarashtra que transgride os mandamentos, é
desonesto e cobiçoso, e que fere a virtude e a religião?
Se o ato cometido persegue quem o cometeu a ninguém mais, en-
tão certamente é o próprio Deus que se mancha com o pecado de cada
ato. Se, entretanto, o pecado de um ato cometido não comina quem
o cometeu, então o poder individual é a causa verdadeira dos atos e
eu lastimo aqueles que não têm poder! (16)
(3.30)

4. Louvor à Virtude

Tua fala, Ó Yajñaseni,(a) é deliciosa, suave e cheia de frases exce-
lentes. Nós a ouvimos. Entretanto, tu falas a linguagem do ateísmo!
Ó princesa, jamais ajo pensando nos frutos de meus atos! Eu dou,
pois é meu dever dar; sacrifico, pois é meu dever sacrificar! Ó Krishna,
eu faço tanto bem quanto posso, tudo quanto uma pessoa deve fazer
na domesticidade, sem saber se tais fatos dão frutos ou não. Ó tu de
belos quadris, eu ajo virtuosamente, não pelo desejo de colher os frutos
da virtude, mas de não transgredir os mandamentos dos Vedas, e
contemplando também a conduta dos bons e dos sábios!
Meu coração, Ó Krishna, é naturalmente atraído para a virtude.
O homem que deseja colher os frutos da virtude é um mercador nessa
virtude. Sua natureza é mesquinha e jamais deve ser contado entre os
virtuosos, nem tampouco alcança jamais os frutos de suas virtudes!
Nem tampouco o homem de coração pecaminoso, que tendo executa-
do um ato virtuoso duvida em sua mente, obtém os frutos de seu ato,
em conseqüência daquele seu ceticismo! Falo-te sob a autoridade dos
Vedas, que constituem a maior prova nestas questões e te digo que
nunca deves duvidar da virtude! O homem de pouca compreensão
que duvida da religião, virtude ou das palavras dos Videntes, está ex-
cluído das regiões a imortalidade e ventura.
Ó filha de Draupadi, a religião é a única jangada para os que de-
sejam ir ao céu, como um navio para comerciantes que desejam atra-
vessar o oceano. Ó tu sem falhas, se as virtudes que são praticadas
pelos virtuosos não dessem frutos, este universo estaria envolto em
treva infame. Ninguém buscaria então a salvação, ninguém procura-
ria adquirir conhecimento, nem mesmo a riqueza, mas viveriam todos
como feras. Se o ascetismo, as austeridades da vida celibatária, os sa-
crifícios, o estudo dos Vedas, a caridade, honestidade - tudo isso fosse
infrutífero, os homens não teriam praticado as virtudes geração após
geração. Se os atos fossem todos infrutíferos, seguir-se-ia uma com-
fusão tremenda. Para o que, então, os Videntes e deuses e Gandhar-
vas é Rakshasas, (b) que são todos independentes das condições huma-
nas, cultivam a virtude com tanta afeição? Sabendo com certeza que
Deus é quem dá frutos com referência à virtude, eles praticam a vir-
tude neste mundo. Esta, Ó Krishna, é a fonte eterna de prosperidade!
Por isso, embora não possas ver os frutos da virtude, ainda assim
não deverias duvidar da religião dos deuses. Deves executar sacrifí-
cios com uma vontade, e praticar a caridade sem insolência. Os atos
neste mundo têm seus frutos e a virtude também é eterna.

Que tua dúvida, portanto, Ó Krishna, se dissolva como neblina.
refletindo em tudo isto, deixa teu ceticismo ceder lugar à fé. Não ca-
lunia Deus, que é o senhor de tôdas as criaturas. Aprende como ca-
nhecê-lo. Reverencia-O. Não deixa tua mente ser assim e, Ó Krishna,
jamais desprezes aquele Ser Supremo através de cuja graça o homem
mortal pela piedade adquire a imortalidade! (17)
(3.30)

a) Outro nome de Krishna, ou Draupadi.
b) Semideuses e demônios.

5. O Sacrifício da Serpente

Quando o Rei Janamejaya soube de seus ministros a história hor-
ripilante da morte de seu pai, resolveu vingar-se de Takshaka e sua
tribo. Fez o voto de que celebraria um sacrifício de serpente e per-
guntou a seus sacerdotes se conheciam algum rito pelo qual Takshaka
pudesse ser levado a atirar-se ao fogo sacrifical. Os brâmanes respon-
deram que não conheciam os ritos do sacrifício da serpente instituído
muito tempo antes pelos deuses em favor do próprio Rei, e que só po-
deria ser executado por ele mesmo. Então, o Rei Janamejaya conside-
rou certa sua vingança e ordenou que os apetrechos sacrificais fossem
trazidos.
Os sacerdotes, depois de medirem o lugar para sacrifício confor-
me prescrito no ritual, consagraram o Rei de modo que este pudesse
ganhar o objeto desejado da oblação. Mas enquanto o sutradhara (b) pre-
parava o lugar de sacrifício, notou certos sinais que prenunciavam que
o grande rito não seria levado a seu fim, devido à interferência de um
brâmane. O Rei, por isso, deu ordens severas aos guardas para que
em hipótese alguma qualquer pessoa desconhecida fosse admitida. En-
tão os sacerdotes continuaram a executar os ritos do sacrifício da ser-
pente e quando tinham acendido o fogo sacrifical as serpentes foram
tomadas de terror. Obrigadas pelo encantamento poderoso, as serpen-
tes vieram de todos os lados, tremendo e silvando e enrolando-se uma
na outra com cabeça e cauda, atirando-se nas chamas. Eram brancas,
negras e azuis, novas e velhas, e produziam sons de diversos tipos. Al-
gumas tinham mais de 1.500 metros de comprimento, outras não ul-
trapassavam o comprimento da orelha de urna vaca. Algumas eras
rápidas como corcéis e outras grandes como elefantes. Em centenas
e milhares, miríades e milhões, foram irresistivelmente arrastadas para
o fogo, onde encontraram morte certa. Assim, a maldição pronunciada
contra seus filhos desobedientes por Kadru, a Mãe das Serpentes, se
cumpriu.
Enquanto isso Takshaka, assim que soube que o Rei Janamejaya
fora consagrado para o sacrifício, buscou refúgio na morada de Indra.
Suplicou ao chefe dos deuses (c) para que o protegesse e salvasse da des-
truição e Indra lhe disse: “Tu não precisas recear, Ó Takshaka, Senhor
das Serpentes, quanto a esse sacrifício da serpente. Brama foi propi-
ciado por mim antes em teu favor; por isso não precisas recear. Tira
a febre de tua mente".
Assim reconfortado, o maior dos ofídios residiu alegremente na
morada de Indra. Mas Vasuki, o Rei das Serpentes, foi tomado de cons-
ternação e pesar quando viu seu povo diminuir sempre, com as najas
rolando sem cessar para as chamas sacrificais. O medo o assaltou e
com coração trêmulo disse à irmã: "Meus membros, Ó bela, estão quei-
mando e não distingo mais as regiões do céu. Afundo sob a carga de
confusão e meu coração estremece. Minha vista peregrina dolorida e
meu coração se rompeu. Agora também eu cairei sem querer no fogo,
pois este sacrifício do filho de Parikshit (d) é executado porque o Rei bus-
ca a nossa extinção. Também eu, certamente, terei de ir para a mora-
da do Senhor dos Mortos (e) Chegou agora a ocasião para a qual tu,
minha irmã, foste esposada por mim a Jaratkaru. Salva-nos e nossa
espécie. Astika, na verdade, Ó tu melhor entre as damas-serpentes,
impedirá esse holocausto. Assim me disse o próprio Brama. Por isso,
irmã amada, fala com teu querido filho que, embora jovem em anos, é
homenageado pelos idosos, e suplica-lhe, a ele que conhece bem os
Vedas, pela libertação de mim e de meus servidores”.
Então Jaratkaru, a irmã do rei das serpentes, chamou seu filho e
lhe disse como Kadru amaldiçoara seus filhos e ela própria fora dada
em casamento ao eremita Jaratkaru, de modo que seu filho nascido de
sua união pudesse salvar as najas da destruição completa. Isso fora
declarado pelo próprio Brama quando, após sacudir o oceano, Vasuki
implorara proteção aos deuses como recompensa por seu auxílio em
conquistar o néctar. Chamado assim a cumprir o propósito de seu
casamento, seu filho, Astika, consentiu de imediato. Foi a seu tio por
parte de mãe e conferindo-lhe vida nova, disse"lhe: "Eu te salvarei, Ó
Vasuki, Chefe das Serpentes, daquela maldição, Ó grande ser. É a ver-
dade que te digo. Reconforta-te, Ó Naja, pois não precisas ter medo.
Eu lutarei, Ó Rei, para que possas conquistar a ventura. Minha voz
jamais pronunciou uma inverdade, mesmo quando falei sem moderação,
muito menos em questões sérias. Irei ao Rei Janamejaya, que foi con-
sagrado para o sacrifício e o propiciarei com palavras auspiciosas, Ó
tio meu, de modo que o sacrifício do Rei possa terminar. Põe tua fé
inteiramente em mim, Ó Senhor das Serpentes, grande em compre-
ensão; tua mente não ficará desapontada comigo". Dessa maneira As-
tika reconfortou seu tio, enquanto tomava para si próprio a febre de
seu coração. Depois foi rapidamente e alcançou o lugar do grande sa-
crifício de Janamejaya, que se achava cheio de sacerdotes, assemelhando-
se ao sol em resplendor. Mas quando desejou entrar, foi impedido pe-
los guardas. Então Astika louvou o rei de glória ilimitada, louvou os
sacerdotes sacrificantes e os demais brâmanes presentes e, finalmente,
louvou Agni, o deus do Fogo. O Rei Janamejaya foi louvado por ele
acima de todos os antigos governantes da terra que se tinham tomado
famosos por suas hecatombes.
Altamente lisonjeado pelo louvor de Astika, o Rei disse aos brâma-
nes reunidos: "Embora um jovem, este fala como um homem velho;
não o considera um jovem, mas um homem velho. Quero-lhe con-
ceder um desejo; concedei-o a mim, Ó sacerdotes”. Porém os sacerdo-
tes sacrificantes declararam que um brâmane, ainda que jovem, deve
certamente ser homenageado pelos reis, mas antes Takshaka devia ser
obrigado a aproximar-se do fogo. Quando informaram ao Rei que
Takshaka buscara abrigo na morada de Indra e Aquele deus lhe prome-
tera proteção, Janamejaya, tomado de ira, incitou-os a fazer com que
não apenas Takshaka, mas o próprio Indra, caísse no fogo sacrifical.
Induzidos pela ordem real, os sacrificantes se esforçaram ao máximo e
utilizaram seus encantamentos mais poderosos. Então o próprio Indra,
montado em sua carruagem celeste, surgiu no céu, louvado por todos
os deuses e seguido por nuvens de trovão e espíritos do ar e hostes de
ninfas celestiais. Takshaka se escondera dentro das dobras do manto
de Indra e tremia com medo. Os sacerdotes novamente citaram o Naja
por meio de seus sortilégios poderosos e até mesmo Indra, vendo aque-
le holocausto, foi tomado de pavor, e deixando Takshaka a seu destino,
regressou à sua morada celeste. Quando Indra se fora Takshaka, in-
sensível de tanto medo, foi arrastado irresistivelmente pelo poder dos
mantras (f) para as chamas.
Os sacerdotes disseram ao Rei: "Ai vem Takshaka rapidamente às
tuas mãos, Ó Rei. O rugido poderoso se ouve dele, que ruge com som
aterrorizante. Abandonado pelo Dono do Raio, (g) na verdade o Naja cai
do esconderijo celeste e seu corpo tomba devido aos sortilégios. Girando
pelo ar, ele vem despojado de sentidos, o Senhor das Serpentes, silvan-
do violentamente".
O Rei Janamejaya, supondo que seu objetivo estava atingido, disse
a Astika: "Ó digno jovem, concedo-te um favor à altura de tua gran-
deza ilimitada. Escolhe e seja qual for o desejo em teu coração eu o
satisfarei, ainda que fosse impossível de dar". Então, bem no momen-
to quando Takshaka estava prestes a cair no fogo, Astika respondeu:
"Se tu me dás um favor, eis o que escolho, Ó Janameiaya. Deixa ces-
sar este sacrifício e que se salvem as serpentes A estas palavras o
filho de Parikshit, não muito satisfeito, disse a Astika: "Ouro, prata e
gado e tudo quanto quiseres, que te possa eu dar como favor, Ó jovem,
mas não deixes que meu sacrifício termine”. Astika respondeu: "Ouro,
prata e gado eu não escolho de ti, Ó Rei. Que termine este sacrificio;
salva a raça de nossa mãe!" Em vão o Rei tentou persuadir Astika a
escolher outro favor, até que finalmente os sacerdotes reunidos aconse-
lharam ao Rei: "Deixa o brâmane ter satisfeito seu pedido". Assim se
salvou Takshaka. (18)
(1.49-58)

a) O senhor das serpentes.
b) O arquiteto do altar sacrifical.
c) Indra.
d) Janamejaya.
e) Deus Yama.
f) Fórmulas sagradas.
g) Indra

6. O Homem no Poço

Um brâmane se extravia numa floresta fechada, repleta de feras.
Apavorado, corre de um lado para outro, procurando em vão uma saída.
Vê então que a floresta está cercada por todos os lados com armadi-
lhas e é abraçado por uma mulher de aspecto terrível. Dragões enormes
e horrorosos, de cinco cabeças e altura descomunal, cercam essa grande
floresta e em meio à mesma, coberta por vegetação rasteira e trepadei-
ras, há um poço. O brâmane cai nele e é apanhado pelos ramos entre-
laçados de uma trepadeira. Como a grande fruta-pão, presa por seu
pedúnculo fica dependurada, também estava ele, de pés para cima e
cabeça para baixo. E no entanto um perigo ainda maior o ameaça ali,
pois em meio ao fosso percebe um grande dragão e na beira da tampa
do poço vê um elefante de seis bocas e doze pés aproximando-se lenta-
mente. Nos ramos da árvore que cobria o poço, esvoaçavam todos
os tipos de abelhas de aspecto temível, preparando mel. O mel goteja
e é bebido avidamente pelo homem pendurado no poço. Isso porque
não estava cansado da existência e não abandonava a esperança de vi-
ver, embora ratos brancos e pretos roessem a árvore em que se pen-
durava. A floresta é samshara, a existência no mundo; as feras são as
doenças, a giganta monstruosa a velhice, o poço é o corpo dos seres,
o dragão ao fundo do mesmo é o tempo, as trepadeiras em que ele
se apoiou a esperança de viver, o elefante de seis bocas e doze pés é
o ano com seis estações e doze meses, os ratos são os dias e as noites,
e as gotas de mel os prazeres sensuais. (19)
(11.5)