O Shatapatha-Brahmana

O Brahmana (ou exegese bramânica) das Cem Trilhas é
a primeira grande obra da literatura védica escrita em prosa, e
podemos talvez situa-la quanto a sua data de origem no século
X antes de Cristo. Como em todos os textos da mesma clas-
se, encontram-se exames das fórmulas sagradas (mantras) ou
pontos doutrinários juntamente com divagações mitológicas e
digressões eruditas ou alegóricas no mesmo. O Shatapatha con-
tém a especulação mais antiga sôbre brahman, ou o Princípio
Absoluto (ver, por exemplo, o número 2 adiante).

l. A Morte e os Deuses

O ano, sem qualquer dúvida, é o mesmo que a morte, pois o
Pai Tempo é aquêle que, por meio do dia e da noite, destrói a vida
dos seres mortais, e então os mesmos morrem; portanto, o ano é
o mesmo que a morte, e quem souber que êste ano é a morte não
tem sua vida destruída nesse ano, pelo dia e pela noite, antes da
velhice, atingindo tôda a duração normal de vida.
Sem dúvida êle é o Terminador, pois é quem, pelo dia e pela
noite, atinge o fim da vida dos mortais, e então os mesmos morrem;
portanto, êle é o Terminador, e quem conhecer êste ano, a morte,
o Terminador, não terá sua vida terminada nesse ano, pelo dia e pela
noite, antes da velhice, atingindo tôda a duração normal de vida.
Os deuses tinham mêdo dêste Prajapati, o ano, a morte, o Ter-
minador, receando que êle, pelo dia e pela noite, atingisse o final de
suas vidas.
Éles executaram estes ritos sacrificais - o Agnihotra (a) os sacri-
fícios da Lua Nova e Lua Cheia, as oferendas das estações, o sacri-
fício de animais e o sacrifício-Soma; fazendo essas oferendas eles não
conseguiram a imortalidade.
Construíram também um altar de fogo, - dispondo inúmeras pe-
dras de encerramento, inúmeros tijolos de yaiushmati,b inúmeros tijolos
de lokampritta, (c) como alguns os dispõem até hoje, dizendo: "Os deu-
ses fizeram assim". Eles não conseguiram a imortalidade.
Continuaram a louvar e trabalhar, esforçando-se por conquistar
a imortalidade. Prajapati disse-lhes então: "Vós não dispondes tôdas
as minhas formas, mas fazeis-me ou grande demais, ou deixais-me
defeituoso; por isso vós não vos tomais imortais”.
Eles disseram: "Dize-nos tu mesmo, então, de que modo podemos
dispor todas as tuas formas!"
Ele respondeu: "Disponde trezentas e sessenta pedras de encer-
ramento, trezentos e sessenta tijolos de yaiushmati e trinta e seis, ou-
trossim; e de tijolos de lokamplita disponde dez mil e oitocentos; e
vós estareis dispondo tôdas as minhas formas e vos tomareis imor-
tais". E os deuses dispuseram conforme dito, e daí em diante se
tomaram imortais.

A morte disse aos deuses: "Certamente com isso todos os homens
se tomarão imortais, e que parte então será a minha?" Eles respon-
deram: "Doravante ninguém será imortal com o corpo; somente quan-
do tiveres tomado êsse corpo como tua parte, aquêle que se deverá tor-
nar imortal, seja pelo conhecimento ou pela obra sagrada, se tomará
imortal depois de separar-se do corpo". Ora, quando êles disseram
"seja pelo conhecimento ou pela obra sagrada", é o altar de fogo
que constitui o conhecimento e êsse altar é a obra sagrada.
E aquêles que sabem isso, ou aquêles que fazem essa obra sa-
grada, voltam a vida novamente quando morreram e, voltando a vida,
chegam a vida imortal. Mas os que não sabem isso, ou não executam
essa obra sagrada, voltam a vida novamente quando morrem, e tor-
nam-se o alimento da Morte repetidamente. (3)
(10.4,3)

a) Nome da Oblação diária ao deus Agni.
b) Literalmente, "acompanhado por uma fórmula sacrifica!”.
c) Literalmente, "enchendo o mundo".

2. O Brahman

Medite-se sôbre o "verdadeiro brahman". Ora, o homem aqui,
não resta dúvida, possui entendimento e de acôrdo com a medida de
seu entendimento quando parte deste mundo, ao morrer ele entra
para o mundo além.
Medite-se sobre o Eu, que é feito de inteligência e dotado de um
corpo de espírito, com uma forma de luz, e de uma forma etérea,
que muda a vontade, é ligeira como o pensamento, tem decisão ver-
dadeira e objetivo verdadeiro, consiste de todos os odôres e paladares
doces, controla tôdas as regiões e permeia todo este universo, que
não fala e é indiferente; - pequeno como um grão de arroz, ou um
grão de cevada, ou um grão de painço, ou o menor de todos os
grãos de painço, é êste Purusha dourado em seu coração; como uma
luz sem fumaça, é maior do que o céu, do que o éter, do que a
terra, maior do que todas as coisas existentes; - esse eu do espírito
é o meu eu; ao sair daqui (morrendo) eu obterei esse eu. Na ver-
dade, quem tiver essa confiança não terá incerteza.
Assim falou Shandilya,a e assim é. (3)
(10. 6, 3, 1-2 )
a) Nome de um mestre famoso.

3. A Lenda Indiana Sôbre o Dilúvio

Pela manhã trouxeram a Manu (a) água para se lavar, assim como
hoje trazem água para lavar as mãos. Quando se lavava, um peixe veio
ter as suas mãos.
O peixe lhe disse: "Ajuda-me, eu te salvarei!" Do que me sal-
varas?' "Uma enchente varrera todas estas criaturas - isso te sal-
varei!" "Como te devo ajudar?”
O peixe lhe disse: "Enquanto somos pequenos, há grande des-
truição para nós e um peixe devora o outro. Tu me manterás pri-
meiro em uma jarra. Quando eu crescer, tu cavaras um poço e me
manterás nele. Quando eu crescer mais, tu me levaras ao mar, pois
estarei então além da destruição".
O peixe logo se tomou grande, com o que disse: "Em tal e qual
ano a enchente vira. Tu ouvirás então o meu conselho, preparando
um navio; e quando a enchente chegar tu entraras no navio e eu te
salvarei dela".
Depois de criado desse modo, ele o levou para o mar. E no mes-
mo ano que o peixe dissera ele ouviu seu conselho, preparando um navio;
e quando a enchente chegou, ele entrou no navio. O peixe então na-
dou para ele e a seu chifre ele atou a corda do navio, passando assim
rapidamente para outra montanha no norte.
Ele disse então: "Eu te salvei. Amarra o navio à uma arvore, mas
não deixa a água te levar, enquanto estiveres na montanha. A me-
dida que a água baixar, tu poderás descer gradualmente!" Assim fa-
zendo, ele desceu gradualmente e por isso aquela encosta da mon-
tanha ao norte se chama "a descida de Manu!" A enchente então
varreu tôdas estas criaturas e somente Manu ficou aqui. (3)
(1.8, 1, 1-6)
a) O pai da raça humana.

4. Cosmogonia

Na verdade, de inicio este universo era água, nada mais que um
mar de agua. As águas desejaram: "Como podemos reproduzir?” Elas
se esforçaram e praticaram devoções fervorosas, e quando se estavam
aquecendo foi produzido um ôvo dourado. O ano, na verdade, não
estava então em existência - êsse ôvo dourado flutuou durante o es-
paço de um ano.
No período de um ano um homem, este Prajapati,a foi produzi-
do dali, e por isso uma mulher, uma vaca ou uma égua gera dentro
do espaço de um ano, pois Prajapati nasceu em um ano. Ele rom-
peu o ovo dourado. Não existia então, na verdade, qualquer lugar
de descanso; apenas esse ovo dourado, trazendo-o, flutuava durante
todo o espaço e um ano.
No finai de um ano, ele tentou falar. Disse "bhuhr", palavra que
se tomou esta terra; - "bhuvar", que se tomou o ar; - “svar", que
se tomou o céu além. Por isso uma criança tenta falar ao fim de
um ano, pois ao fim de um ano Prajapati tentou falar.
Quando falava ela primeira vez, Prajapati dizia palavras de uma
sílaba e de duas sílabas; por isso uma criança, quando fala pela pri-
meira vez, diz palavras de uma e duas sílabas.
Essas três palavras consistem em cinco sílabas e êle as tomou as
cinco estações. Ao final do primeiro ano, Prajapati subiu para estar
sôbre essas palavras assim produzidas; por isso uma criança tenta
estar de pé ao fim de um ano, pois ao um de um ano Prajapati fi-
cou de pé.
Ele nasceu com uma vida de mil anos; assim como alguém po-
deria ver a distância a costa em frente, assim ele olhou a costa a
frente de sua própria vida,
Desejando ter progênie, continuou a cantar louvores e a trabalhar.
Estabeleceu o poder de reprodução em seu próprio eu. Pelo alen-
to de sua boca criou os deuses - os deuses foram criados ao entrar
no céu; e esta é a divindade dos deuses, a que tenham sido criados
ao entrar no céu. Tendo-os criado houve, por assim dizer, dia para
ele e esta é também a divindade dos deuses, a que, depois de cria-
los, houve, por assim dizer, dia para ele.
E pelo alento ou respiração para baixo, ele criou os Asuras!
- que foram criados entrando nesta terra. Tendo-os criado houve,
por assim dizer, treva para ele.
Agora que a luz do dia, por assim dizer, existia para ele, ao criar
os deuses, isso êle fêz o dia; e a treva, por assim dizer, que havia
para êle, ao criar os Asuras, disso ele fêz a noite - eles são esses
dois, o dia e a noite. (3)
( 11. 1, 6, 1-11 )

a) "Senhor das criaturas", o deus supremo a vir.
b) Uma classe de demônios, oponentes dos deuses.